terça-feira, 25 de novembro de 2014

A Viuva Enjeitada

Isto é uma história verídica. A impotência - cruzes canhoto! - era o maior drama do sr. António, que sobrevivia com sua mulher. A reforma não era boa, chegava a faltar-lhe para os medicamentos, mas o pior era ter uma mulher marreca.

Um dia o drama do sr. António deu uma reviravolta. Tudo aconteceu quando sua mulher perdeu, enquanto limpava o chão da antiga fábrica, o contacto com o chão. Diz quem viu, que ela no ar já ia desmontada e que se terá socorrido de uma Avé Maria que não finalizou. O chão interrompeu-lhe as preces. Esmigalhou o tornozelo. Partiu uma perna em duas. E ao tentar levantar-se abriu o pulso. Mas a reviravolta surgiu aos olhos espantados da vizinhança meses depois: A queda enjeitou a mulher do sr. António! 

A nova configuração da mulher levantou o ânimo ao sr. António e a impotência curou-se.

Isto é uma história verídica, a história de duas pessoas que encontraram felicidade após uma escorregadela. Enfim, apenas é a crónica de um típico caso de vida, entre as poucas que têm um final feliz. Resta contar que o sr. António e sua mulher não viveram a felicidade por muito mais tempo. Era a impotência do Sr. António que lhe mantinha o sistema cardiovascular abaixo dos limites. Certo dia, num momento alto de suas sobrevivências e de unção dos corpos, uma coronária não resistiu. A felicidade deu cabo dele.

domingo, 9 de novembro de 2014

Episódios do Absurdo #6


Absolutamente incrível, admirável, estúpido, ... , quase tudo o que é relativo à espécie humana concentrado num vídeo.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

António - Herói Pós-Moderno

Gostamos de heróis. Personificações dos nossos desejos capazes de lutar por concretizá-los. Embora, nunca saibamos o que exactamente desejamos lá no fundo! António, nome fictício, é um desses heróis.

António, herói desta história, foi com um casal amigo passear e, depois, já mais calmo, presenteou a família com esticar do pernil. Quem ler a notícia que poderá concluir? Esta história é um thriller da psicanálise do acaso. Esta história é mais um caso de pseudo-análise de classe, mas poucos se importam por a média não definir as relações sociais da propriedade moderna ou outra qualquer. Que interessa isso quando esta é uma daquelas histórias em que, novamente, a realidade é tão real como a ficção. António, à falta de recursos imediatos para fazer cinema (ou jogar vídeo-jogos), traz a ficção à realidade - num vice-versa que funde ambas. Imagem e semelhança. António, herói desta história, artista plástico da vida, e plástico artista da ficção, inaugura sem querer nem saber o neo-ficcismo do pós-pós-modernismo - algo que apenas no futuro ficaremos a saber e já depois de estarmos todos mortos. António ou Zé, sobrenome Ninguém ou Todos. Nós, enquanto continuarmos a escrever coisas, as coisas escrever-se-ão por elas, transformando Antónios em jornais e Jornais em antónios. 

http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=4191610#.VEYMYyNYpJo
Note-se bem. Esta notícia é antes um ensaio sociológico num enredo cinematográfico que ao ser notícia se transfigurou num acontecimento real. E vice-versa. Este acontecimento real transfigurou-se em notícia num enredo cinematográfico que é antes um ensaio sociológico da notícia.

Por fim, vamos mais ao fundo da questão e/ou sobrevoemos de vez sobre ela. António, herói desta história, esfaqueia o desejo concretizado de família e num momento social perfeito. Nenhum desejo, elevado e humanizado em fantasia, é concretizável por inteiro sem matar o sonhador. Não haverá maior pesadelo que a própria fantasia em plena realização. O abismo da plena realização para o vazio levou o herói desta história, António, a matar os seus adereços de vida mais queridos, mulher e filha, à facada! Qualquer pesadelo é melhor que o da plena realização. 

António, herói desta história, arquétipo pós-moderno das massas, Messias pós-pós-moderno, imagem de plástico da nossa semelhança, salvou-se da plena concretização com a fusão da realidade com a ficção. Mas condenou-nos a todos. Os textos noticiosos, fictícios ou não, tornaram-se o enredo da vida, sendo o inverso válido mas redundante escrevê-lo. O fim está próximo. Basta alguém escrevê-lo. Fim.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Crónica de uma Bomba de Gasolina à Noite

E se a mentira que o homem constrói não for a negação das condições do plano da existência mas antes a refracção da própria realidade, dado que a mentira transporta em si os elementos que definem a verdade, como um olhar que capta uma silhueta e especula sobre o objecto, reduzido ao intervalo das possibilidades reais, e é nestas considerações que a madrugada nos leva à bomba de gasolina, daquelas estações que permanecem abertas quando a noite tudo silenciou, e neste cenário o foco centra-se numa mulher jovem de etnia africana, gorda, pouco atraente, olhos cavados, uma cara rebentada de borbulhas, e faz-nos lembrar um ferrero rocher sem que a consciência nos impeça de tecer opiniões deselegantes, pois nesta crueza descritiva há uma validação preambular, mas voltando ao âmago narrativo, temos uma pessoa feia e gorda acabada de sair do trabalho, visto que ainda traz consigo um uniforme da empresa de limpezas, e imaginamos que terá vindo à loja a caminho de casa, uma casa que deve resumir-se a uma sala pequena com kitchenette, uma casa de banho e um quarto do tamanho de uma dispensa, e com isto se define uma casa porque assume uma exposição básica dos elementos que definem uma casa, um espaço que delimita as fronteiras do interior para o exterior, em que se encerra, mesmo quando arrendado, a ideia de propriedade, porém esta personagem não deve desenvolver a consciência para discutir estas, e outras, significações complexas, resumindo a sua relação com o espaço através de construções emocionais relativas à posse e ao status quo necessário para a sua integração social, visto que os seus vínculos sociais dependem da afirmação das condições que constroem as suas expectativas idiossincrásicas e culturais, o que por outras palavras significa que se não possuir um espaço que se possa definir como casa, pode sentir-se rejeitada por um meio envolvente que força a ideia de posse como requisito social básico, e na continuação desta ideia, vêmo-la a comprar duas revistas de moda, vários pacotes de bolachas e chocolate e um saco de pipocas, e não nos é difícil de adivinhar que quando chegar a «casa», e assim que ligar o televisor, não para seguir a programação mas simplesmente para se sentir acompanhada, abrirá as revistas onde constatará que há mulheres que são terrivelmente atraentes, afogadas em luxo e em estatuto de elite, que nada fizeram da vida com mérito próprio, à força do trabalho e do intelecto, mas tão só nasceram com genes que as favorecem nesta geração da humanidade, e esta nossa personagem afirmará nos interstícios da consciência comiserativa que a vida é injusta, e mais uma vez adivinhamos que entre lágrimas recalcará o vazio com chocolates e bolachas e pipocas, com um intuito suicida de sabotar o seu futuro, caminhando num trilho oposto ao projectado, e tudo porque a frustração e a angústia levam-na a odiar-se diariamente, seja no trabalho ou seja em «casa», recusando procurar outras ferramentas para concretizar os seus desejos e necessidades, não só por estar alienada, mas porque precisa de alimentar a mentira, e é esse o ponto nevrálgico deste discurso, dado que os sujeitos constroem mentiras não para negar a miserabilidade da vida, mas antes para se impedirem de constatar essa mesma miserabilidade e transformá-la em algo mutável, pois é mentindo-se que estorvam a mudança e a concretização das projecções pessoais, acabando por realçar e sublinhar a realidade da sua situação, e ao analisar todos os elementos que definem a mentira encontramos a silhueta da verdade, e quando a nossa personagem acordar no dia seguinte, ainda no sofá, com a televisão acesa, duas revistas que provam a insignificância da sua existência, embalagens de plástico vazios, um rosto com rímel borrado e duas novas borbulhas, bastam-lhe um saco do lixo e uma cara lavada para recomeçar um ciclo de autocomiseração que só terminará com um enfarte do miocárdio, c'est fini, kaputt, arrivederci, e tudo isto seria irrelevante se fosse um caso excepcional, mas não o é, pois a mentira continua a ser interpretada como a negação da verdade e não como a refracção da realidade, impossibilitando a tradução das angústias humanas em qualquer coisa transformável.

sábado, 11 de outubro de 2014

O Silêncio

Falta silêncio. Esse bem precioso é constantemente evitado com o encher de chouriços sonoros. A música é quase omnipresente. Entra-se no carro, liga-se o rádio; entra-se numa loja, mais música; sobe-se num elevador, mais notas musicais; vamos mandar uma cagada à WC e também nos bufam com música! Música de merda, normalmente. Mas também a boa música vira poluição na overdose diária a que estamos submetidos.

O maestro Vitorino de Almeida escreveu um pequeno e fantástico livro chamado O que é Música? em que reflecte sobre este assunto, mas noutro sentido ao que acima escrevi. Ele exemplificava que a música ou outro qualquer ruído era admitido conforme o contexto. A cacofonia de barulhos e músicas chocando umas com as outras numa feira ou parque de diversões é humanamente admitida, enquanto um simples tossir num concerto de música erudita pode irritar a plateia.

Que nos leva a evitar o silêncio nos momentos em que o contexto o exigiria? Será a voz interior que de dentro de nós submerge? Há quem ligue uma TV só para companhia, embora ignore a programação. Pelos vistos, mais vale estar mal acompanhado!

Há meses que deixei de ouvir música no carro. Prefiro ouvir o motor ou os estranhos efeitos que o som faz vindos da janela com o movimento. O interesse por este aparente silêncio intensificou-se com os constantes pedidos de minha sobrinha para ligar o rádio na RFM ou na Comercial. É verdadeira poluição sonora. Um nojo de música vomitada numa curta e incessante playlist que nos faz definhar o cérebro e a paciência. Conteúdo e forma musical de plástico. Plástico, plástico e mais plástico, com excepções musicais que se afogam na merda da lista de canções que essas rádio debitam. Poucas coisas me tornam tão óbvio o valor do silêncio, neste caso, da ausência de música.

A rádio Comercial, a RFM, e quase todas as outras, são um atentado à própria música como arte. É musica velha nova. É sempre música velha nova. Não acrescentam nada. As concessões para uso das frequências radiofónicas em que emitem deviam ser canceladas. Estas rádios não dão um serviço positivo à comunidade. Puro desperdício de ondas, quando há um enorme e desafiante mundo de música experimental e música antiga para explorar. Há imenso para se discutir e dar a conhecer sobre música e sobre a sua interligação com a sociedade, mas o que nos dão são receitas de plástico para os ouvidos.

Há dias li um artigo sobre o sonoplasta Vasco Pimentel. Foi inspirador. Fantástica a perspectiva e atitude dele perante o som. Abriu-me os ouvidos e a mente para tudo isto que vos falo. Estes últimos tempos têm sido reveladores relativamente à qualidade e riqueza daquilo que há para ouvir em nosso redor.

Como músico, os pequenos e grandes sons, tanto os amestrados como os selvagens, têm ganho novo corpo e cores para mim. Nada como o silêncio para intensificar o valor do som e música.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Praxes em Fila Indiana

Ela defendia a praxe. Argumentava. Disse-lhe que me fazia confusão ver pessoas em fila indiana, juntinhas, caminhando passo a passo para o mesmo ponto. Disse-lhe que a ordem indiana pode ser adequada e positiva quando se alinham até ao talho, para buscar umas febras e evitar confusões. Mas disse-lhe, também, que ver pessoas em fila indiana para serem talhadas me fazia mingar as vergonhas. Lembrei-lhe que há uns anos a malta fez indianas filas para entrar nuns comboios. Há um lado conformista e acrítico nas filas de miúdos com as cuecas por cima das calças que me lembra Auschwitz, e disse-lhe. Ela riu, fingiu não me levar a sério, não quis levar-me a sério (aqui foi sensata), mas ouviu-me e perdeu-se no raciocínio dela própria. Engraçou comigo! Falou que eu era um brincalhão (mas a merda é que eu falava a sério). Dava a entender que queria ser praxada e eu não estava para ali virado. Talvez o problema fosse somente o facto de preferir as morenas, mas com aquela fila de argumentos indianamente encarreirados já toda ela me era no meu imaginário um holocausto. Preparei a fuga. A sua gesticulação convidava-me para fazer fila indiana, com ela. Confesso, hesitei, tive dúvidas se deveria enfileirar-me nela, mas a História ensina muita coisa e tomei uma decisão. Fiz a escolha certa. Fiz o que devia ter feito. E agora estou arrependido de não lhe ter segurado a mão e apanhado o comboio. Afinal, ela defendia a praxe.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Centelhas que ainda Faíscam #3


Frenzy - The Ex
Let me tell you about Karl Marx
a visionary fish in a pool of sharks
he was funny guy
I don't have to tell you why
his one-liners were the best
like the one in the past
about das Casablanca manifest
For that night, a women she came
and she warn away, to warn some others
to warn her brothers
but Karl just said; "hey Fuck off
I knew you guys, up to your eyes
I know that you Fuck your mothers"
He was really quite a laugh
I just couldn't get enough
I saw all his movies, one by one
they were thought-provoking
and I'm not joking
but this son of a gun
had only just begun
to have some fun
And don't forget about this book he wrote
with plenty of "workers, you'll get fired" scenes
hello you must be going
if you know what that means
people used to laugh their heads off loud
just like in the gay old times
with them good old guillotines
And then there's Groucho, a serious bloke
who never told a single joke
he had a beard, that might seem weird
but he sure wasn't shy as he cast the die
for he told the bosses; "you bet your life"
Let's put things in hysterical perspective
to make my remarks a bit more effective
for those were the days
but those days took a hike
when the West world insist
on a sit-down strike
for the stand-up communist ...
not columnist, economist but communist
not chameleon, comedian but communist
Well, that's not arty-farty,
that's when Lenin met McCarthy
and this, as far as I can see,
was the beginning of a beautiful frenzy
The beginning of a beautiful frenzy

Dia 4 de Outubro, às 21h30, no Pavilhão do Grupo Desportivo Ferroviário do Barreiro: recuperar The Ex nos vagões da memória.  

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

"Os Zebrús estão a um nível superior"

Se alguém tiver que explicar o que é um glutão a quem nunca viu um glutão, escusado tentar fazê-lo pela negativa. Dizer que um glutão não é um cão, nem um hipopótamo, nem tem quatro rodas ou asas e nem é o padeiro que fez a dona Zenilda pecar, é, claro está, o mesmo que nada dizer sobre o que é um glutão.

A isto chama-se definir uma coisa pela negativa. Um sofisma clássico.

As coisas só podem ser definidas pela positiva. Nada se prova pela negativa. Quando se tem uma tese fundamentada pela positiva, ela pode ser refutada... surgindo uma outra tese. Além disso, há algo importante a ter-se em atenção: quando não é possível provar-se a inexistência de uma coisa, isso não significa que essa coisa exista.

Vejamos o caso do zebrú. O zebrú não é um glutão, não é um cão, não tem quatro patas nem motor. Sei, por acaso, que você não sabe o que é um zebrú nem nunca viu nenhum, mas desafio-o a provar na caixa de comentários abaixo que os zebrús não existem. Se não conseguir prová-lo os zebrús passam a existir?

Deus nos salve de tais lógicas!

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Crónica de uma Lembrança

Quando as luzes se apagam são vultos que vagueiam nas penumbras das ideias, sombras que se afastam e que se aproximam, em silêncio, nas madrugadas pesadas e longas, madrugadas insones, dado que nos assalta uma sede, uma garganta de pavores nocturnos, uma violência que se remexe nos nossos intestinos e já só nos resta ir ao frigorífico, no resgate do vinho branco, a profilaxia que os nossos instintos nos recomendam, e quando puxamos pela porta do frigorífico há aquela resistência de vácuo que nos dificulta as soluções mais fáceis, soluções que também são as mais frágeis porque nos atiram para um limbo, uma corda bamba de estados emocionais, uma dúvida que nos oprime a consciência, no entanto a porta cede e dá lugar à luz que nos estonteia os nervos, piscámos os olhos, com uma mão protegemo-nos da cegueira e com a outra buscamos a garrafa, recordamo-nos de uma infância, de uma feira, que hoje detestamos, aquele espectáculo de desordem e confusão, e gentes que se comunicam em decibéis difíceis de suportar, e é tão fácil os nossos olhos se perderem nas dezenas de barracas, e nas centenas de inutilidades que se vendem, e toda aquela sensação de sorrisos falsos e intrigas e desonestidades, toda aquela sensação de vivências marginais, tudo tão circense, da mesma forma como detestamos o circo, já não suportamos aquele modo de vida paralelo porque sabe-nos a logro e a fantasias do degredo, e vemos o nosso pai a regatear fruta num diálogo de compadres, num jeito de amizade forçada que tilinta uns cobres que se trocam por um saco de maçãs ranheta, uns sorrisos, uma gargalhada que se confunde em gargarejar, um escarro para o canto, obrigado e até amanhã, e nisto uma maçã rola da bancada e cai ao chão, e por lá se fica entre sapatos que se movem, e de pontapé para ali e outro para acolá, a maçã experimenta a turbulência do quotidiano humano até repousar num ângulo escondido entre barracas, esquecida e perdida, nem um rato que se aproximou para farejá-la fixou interesse na maçã, uma vez que foi expulsa das dinâmicas existenciais, relegada à condição do desprezo e da repulsa, uma maçã solitária em estado de decomposição acelerada, visto que foi retirada da qualidade que subjaz a matriz de existência das coisas existentes, porque fora do seu contexto cessam as razões que a mantinham no plano da sua entidade como maçã, já só lhe resta o caminho do perecimento, contaminada por um bolor de tons azuis e verdes e um arco-íris de putrilagem, nem as sementes escapam, nem a possibilidade de renascer foi-lhe dada, completamente condenada a desaparecer neste varrer de desdém que a vida nos oferece, e ao recuperarmos o presente, ainda cegos do frigorífico, desistimos da garrafa de vinho, porque já nos basta a marginalidade da noite, e é a cama que nos impele a refazer as oportunidades do amanhã, pois é o sono que nos reabilita as podridões das narrativas diárias, no entanto somos obrigados a frisar que não somos maçãs, somos homens, e mesmo quando vetados ao esquecimento, projectamo-nos nos sonhos e nas utopias, neste fluxo inesgotável de existência humana, muito para além das nossas sementes e do nosso perecimento.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Um homem vulgar

Ontem um senhor com cinquenta e muitos anos fazia conversa comigo. Dava grande importância em ser simpático para tudo e todos. As outras pessoas importam-lhe hoje mais do que antes, pareceu-me. Provavelmente um sinal de que nunca como agora ele precisa tanto dos demais. Explicitou que gostava de falar comigo! Logo eu que não gosto de fazer conversa de circunstância...

Perguntei-lhe, a certa altura, o que vinha ali fazer. Ele ia explicar, e para isso percebi que teria de puxar pelo curriculum, pela experiência, por tudo aquilo que o fazia importante para estar ali estar a fazer o que foi fazer.

- Sabe, eu...

Foi então que ele interrompeu a resposta ainda antes de a começar, olhou fixamente em frente, com ar reflexivo e

- Não! Na verdade sou um indivíduo completamente vulgar. Vulgaríssimo. Sou vulgaríssimo.

Pausa. Olhar fixo em frente e reflexivo.

- Sou um indivíduo vulgaríssimo.

Momento intenso. Olhar intenso. Tom de voz intensíssimo. Não lhe respondi. Em momentos destes penso de mais para conseguir ter espaço para conseguir falar. Lembrei Carl Sagan. As famosas passagens de Cosmos em que tudo depende da distância de perspectiva.

A Terra, a Via Láctea, é só uma partícula de pó no imenso Espaço. Tão pequenina é a nossa constelação que o planeta Terra se torna insignificante. Poeira cósmica vulgar, vulgaríssima. Porém, é praticamente tudo o que temos. Para nós, que aqui vivemos, a Terra é o planeta mais importante. [Pale Blue Dot]

Ali ia um homem vulgaríssimo.

domingo, 31 de agosto de 2014

Identificativo de Benfiquismo

O que é o Benfiquismo senão um conjunto de narrativas que montam memórias e histórias, num conjunto de pessoas que partilham uma idiossincrasia que foge à nacionalidade e que nasce do acaso de uma herança ou de um contágio vizinho ou de um miúdo que se senta no lado esquerdo de um banco traseiro de um táxi.
O que é esta coisa que nos identifica a um clube desportivo senão um acondicionamento acidental que nos traça uma linha invisível a que chamamos destino, e que a razão nos oferece o argumento do abandono e a emoção labora no sentido contrário.

O que é o Benfiquismo senão uma linguagem que não se traduz em palavras, gramática, semântica, mas antes uma linguagem que se constrói por olhares, abraços, festejos e lágrimas, uma linguagem tão própria que constitui, aos poucos, um âmago da identidade pessoal e colectiva, e que nos marca o discurso e o carácter e as arritmias cardíacas.

O que é o Benfiquismo senão um funeral de um amigo, em cujo caixão se deixou repousar a bandeira do partido e a bandeira do Benfica, até os vermelhos se confundirem no que parecia ser um único tecido, dado que a viúva afirmava que o comunista e o benfiquista eram a mesma pessoa e o neto levava um e pluribus unum enrolado no pescoço.

O que é o Benfiquismo senão um colega de internamento na hematologia resgatar na véspera do seu falecimento, num lapso de senilidade, a curiosidade de saber se o Benfica ganhou o jogo, e na falta de atrevimento terei dito que sim, enquanto sangrava por dentro pela mentira, enquanto o colega terá provavelmente esboçado o seu último sorriso.

O que é o Benfiquismo senão um intervalo de um fratricídio absurdo e criminoso como o da guerra colonial, quando se apontavam os holofotes para a mata durante o relato de mais um jogo do Benfica, dado que durante 90 minutos fazia impressão matar alguém que partilhava connosco este amor pelo clube da águia.

O que é o Benfiquismo senão trepar os Alto dos Moinhos para testemunhar o maremoto vermelho invadir as artérias de São Domingos de Benfica, num dia de jogo, dado que ver aquela mancha enorme é como saber que chegámos a casa, é como as saudades da especialidade materna que ainda penetra no nosso olfacto e paladar, é como revisitar amigos de outras vivências nossas e bebermos imperiais até nos esquecermos da idade, e com mais imperiais até acreditamos na nossa bonita e desafinada voz, e dado que a única canção que a ebriedade nos permite passa por assumirmos que somos benfiquistas e papoilas saltitantes.

O que é ser Benfiquista senão ter histórias que nos relacionam com o Benfica. Não obedecemos a matrizes glorificadas que dão mote a emblemas e a escudos. Não nos interessamos por datas de fundação ou centenários. Não contamos troféus e vitórias e campeonatos e taças. Somos Benfiquistas por acaso. E é no acaso que o Benfica faz história connosco. 

Ser Benfiquista é narrar o romance da nossa vida com o Benfica, e é participarmos nesta corrente histórica que nos enlaça nesta confusão emocional que chamamos Benfiquismo.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Allfama

Num sítio que vai sendo Alfama entramos numa recém inaugurada loja de uma amiga. Igual a muitas outras, lavadinha, marcas identitárias bem planeadas em três itens: cortiça, sardinhas, fado. Lisboa ou Portugal, implícito em cada um dos itens. Marketing. Loja lavadinha. Sem raízes. Malas, canetas, capas para cadernos, tudo em tecido de cortiça, portuguesa, acompanhados com bolos e bolinhos mais sardinhas sardinhas ou sardinhas desenhadas. À entrada, Fado. Colectâneas de Amália sem cortiça ou sardinhas, valha-nos isso.

Saímos, procurei por uma casa onde já fui feliz, uma casa de fados, com três marcas identitárias organicamente enraizadas: Fado, Benfica e boa comida a preços baixos. Durante um fado um golo do Benfica. Fadista perturbado na própria alegria. Mas é tudo recordações. A casa de fados virou memória. Deixou de existir. Agora é outra coisa. Ter-se-á agora tornado cortiça, sardinhas e… Marketing.

Subimos perdidos por Alfama acima. Procurámos boa comida a preços baixos. Mas só casas de fados sem Benfica e Benfica sem fados. É o mesmo que dizer comida sem preços baixos. Boa comida, apesar de tudo - presumo. Enfim! Três itens identitários: marketing e puta que os pariu que já não há pachorra para sardinhas enlatadas cortiça enlatada Benfica enlatado comida boa em casas enlatadas assepsia asae e enlatados desenhados com sardinhas. Marketing. Putacuspariu que a fome e a carteira quase me levaram “jantar” Mcdonalds em pleno bairro popular e aviso que no dia em que definitivamente não conseguir usufruir da nossa cidade de Lisboa, enfiar-lhos-ei os postais da cidade pelas sardinhas de cortiça acima, ie, inbound marketing.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Crónica de uma Noite de Verão

O que teremos a dizer à noite, dado que é nela que sentimos o beijo das ausências, tal como o contacto de peles alheias que sentimos na cama e nos perturbamos com insónias e vazio e angústia, um absurdo de movimento sem destino, e a pele que julgámos sentir uma prega de lençóis esquecidos, e saímos à rua e é um mundo de sombras lunares e são grilos que nos acompanham nestes pequenos escapes, dado que é verão, uma noite de verão, e estamos secos, boca seca, olhos secos, miolos secos, tripas secas, e beijamos o gargalo da garrafa de cerveja, e na falta de cerveja bebemos pegões, e na falta de tudo buscamos a memória das vidas sentidas e experimentamos a saudade, porém, quando nos deixamos de merdas assumimos que não há saudades, há mariquices, esta necessidade de nos prendermos ao passado porque temos medo do estalo que vem ao virar da esquina, há toda esta necessidade de nos mentirmos como se a ficção fosse, de alguma forma, mais tolerável de viver que a sobriedade das vidas comuns, e é a trocar o passo que voltamos à cama, e esperamos que os mosquitos nos deixem as veias em paz e que nos chupem este medo de viver. 

domingo, 17 de agosto de 2014

Crónica de um Deserto

As curvas fazem a vida, dado que quando olhamos o sol vemos um círculo amarelo pujante, em movimento subtil de trajectória elíptica que reflecte fulgor no metal das jantes, e quando observamos aquela mistura de pneu com estrada, borracha e alcatrão, sentimos a energia cinética traduzida em celeridade e abraçamos aquele torpor mecânico que nos aquece os nervos, uma sinfonia de potência maquinal que rasga a misantropia dos desertos áridos, solo escaldado de verão perpétuo, chão de gretas para refúgio de pequenos répteis, visto que em movimentos circulares uma águia está de sentinela, paciente, olho redondo, persistente na procura de um aperitivo, e se nos fixarmos nesta árvore, possivelmente uma oliveira, constatamos que no nada há sempre qualquer coisa, tamanho absurdo são as teias da sobrevivência, onde uma pequena aranha descansa depois do seu labor, uma vez que o conjunto das pequenas tarefas faz um outro conjunto de pequenas histórias, da mesma forma que as folhas baloiçantes da árvore são causa desta leve aragem proveniente dos recônditos mistérios do planeta, e de papel rabiscado, calculadora na mão, computador com cálculo diferencial e modelos aproximados, tentamos compreender todas as particularidades dos fenómenos reais, contudo, e porque até a sabedoria tem limites, é-nos impossível entender o que faz um carro branco, um dodge challenger 1970, em velocidade colérica, numa estrada alcatroada no meio de um deserto, e se pisarmos a fundo o pedal do travão soltamos uma chiadeira que viola os princípios do silêncio estéril e largamos um fumegar de borracha queimada, pneus que derrapam ora para um lado ora para o outro, e no alcatrão marcamos linhas pretas oblíquas até que o carro, eventualmente, pára, e uma porta se abre, e sapatos que pisam o chão e o nosso corpo que se levanta, mãos nas ancas, dobrar as costas, estalar a espinha, puxar o chapéu e tapar os olhos, é um sol que nos cega, levar a mão ao bolso das calças e puxar um maço de cigarros, e de cigarro na boca contemplar as curvas da estrada que se perdem no horizonte, dado que perscrutamos as essências das coisas até à miopia do nosso entendimento, como quando tentamos olhar para o quadro todo, uma barreira de nuvens nos proibe o abrangência do universo, e nestas condições só percebemos as pequenas coisas, amputações da realidade em fatias muito pequenas, tudo demasiado pequeno e frágil, só uma fracção da verdade, e dado que nos dá uma vontade de mijar, vamos à berma da estrada e baixamos a braguilha, um borbulhar de urina que se mistura com o pó do deserto, e reparamos, fixados, numa águia a vaguear aos círculos num céu vazio de acontecimentos, um céu tão diferente da nossa cabeça cheia de merda, visto que fazemos da nossa vida uma montagem paciente de peças de puzzle, e completamente à toa fomos encaixando partes num lado e noutro e a dado momento percebemos que o desenho não faz qualquer sentido, tamanha confusão de partes que não fazem o todo, um conjunto de disparates sem nexo que nos pesa a consciência e o juízo, acumulado numa massa enorme que nos obstrui a apreciação das múltiplas experiências da vida, e então puxamos a braguilha para cima, apertamos o cinto e, voltando ao carro, abrimos o porta-bagagens, um saco e uma pá, e saindo da estrada, dez, quinze, vinte passos, cavamos um buraco, algumas braçadas e tiramos a camisa ensopada em suor, mais braçadas, e percebemos que há este enorme buraco que temos no peito, e nele há um vórtice de emoções perdidas, assuntos inacabados de uma vida passada que nos condicionam os projectos de uma vida futura, e muitas vezes mantemo-lo porque estamos convencidos que um dia os assuntos se resolverão, mas há nós que nunca se desatarão, dado que a vida e suas experiências consequentes são exemplos extraordinários e infinitos, e o nosso entendimento é uma propriedade limitada e subordinada à alienação, e só nos resta cavar um buraco, atirar o saco dos nossos sonhos absurdos para o vazio, tapá-lo, e finalmente voltar para casa visto que apanhámos um escaldão nas costas, o deserto não perdoa os incautos, e tudo o que sobrará é uma névoa escura de um tubo de escape, um carro que faz uma inversão de marcha, um céu órfão de uma águia desaparecida, um sol deslocado, e uma estrada, tal como a vida, feita de curvas que se perderão no efeito tremeluzente de alcatrão escaldado.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Por que se caminha?


Porque tento escrever algo se não preciso e nem sei se tenho algo para dizer? No entanto, cá estou, escrevendo. Não me interessa somente um motivo, um foco ou algo que importe e valha a pena passar a palavras. Interessa-me, sim, o motivo, o foco, aquilo que mais importa. Há quem diga que escrever ajuda a compreender e que o acto obriga a estruturar as ideias. Confesso: escrevo como exercício de busca. Escrever ajuda-me a compreender o que busco.

Mas se tenho disponibilidade porque não escrevo mais? Se calhar não busco compreender coisa alguma, caso contrário, com tanta disponibilidade, teria a tese escrita em vários tomos. Mas se não escrevo como exercício de uma busca, então porque o faço quando o faço? E concluo que escrevo quando não tenho disponibilidade para o fazer!

Talvez esteja aqui o foco, aquilo que importa passar a palavras.

(escrevo muitas vezes como um solista de Jazz improvisando sem qualquer destino e sem adivinhar se surge tensão ou resolução)


Percebi!
É uma fuga. A escrita surge como fuga. Um fazer isto invés daquilo. Não é uma procura, uma busca, e isso muda muita coisa. O foco. A posição do foco: ele passa a estar atrás e não à frente. Buscamos o que está adiante. Fugimos do que está atrás. O motivo? Medo. A busca é curiosidade. A fuga é medo.

Preciso de recapitular.
A busca era uma ilusão e não um impulso da curiosidade. Fujo para perceber? Estranho! Sempre se estranha a novidade. Mas faz sentido. E não faz.

(na música as resoluções surgem normalmente como respostas mas nesta jam não)

Segundo Galeano a Utopia é como o horizonte e nos serve para caminhar. Damos dez passos em frente, e o horizonte dez passos se distancia. A caminhada prosseguiria eternamente. Ele ou eu, um de nós está errado. O que nos faz caminhar é o medo e não a utopia. Caminhamos dez passos em frente e logo atrás o medo com dez passos nos persegue.

Andamos a medo. É a nossa maior força motriz. O caminho faz-se fugindo. A curiosidade e a utopia são um álibi da fuga.

Escrito isto, compreendi que escrevo enquanto fujo. Compreendi mesmo?

(sem rumo delineado as notas que foram tocadas dão mote às que virão)


Perdi-me! Se soubesse porque escrevo talvez não tivesse escrito isto. Talvez não escrevesse de todo.

Pensei em parar e deixar-me apanhar. Mas o pior medo é aquele que desconhecemos ter medo. E com este texto dei outros dez passos em frente. Outros dez passos ouço atrás! 

Galeano ou eu, um de nós está errado e ambos estamos certos. Está aí o foco!

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Centelhas que ainda Faíscam #2

Paper Memories

Obra de Theo Putzu, realizador e fotógrafo oriundo das calles de Barcelona, que subtrai do Homem a solidão para reencontrar-se com âmago da humanidade: a memória.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O Mito de Empreendedorismo

O empreendedorismo não é uma moda, é uma filosofia. Empreendedorismo não se limita às antigas definições. Faz parte da mutação económico-social vigente. Não é por acaso que empreendedorismo é matéria explorada por cursos e cadeiras ligadas à gestão empresarial e à economia. 
É importante perceber que há uma inevitabilidade: todos os sistemas mudam. Estão em perpétua mudança, e não há forma de travar a mutabilidade. 

Longe vão os tempos em que a economia focava-se na produção. A economia de hoje foca-se no lucro. O lucro faz-se de duas formas: exploração de mão-de-obra e especulação. Muito ruído se faz para fugir às evidências. É preciso repetir vezes sem conta. O lucro faz-se pela exploração de mão-de-obra e pela especulação. O lucro faz-se pela exploração de mão-de-obra e pela especulação. 
Contudo, esta filosofia económica tem falhas que consequentemente levam a crises económicas, ou crises financeiras ou crises imperialistas. Ora faz-se uma crise de sobre-produção ora faz-se uma crise de especulação financeira.
Como se disse, todos os sistemas mudam. Tenta-se corrigir as sucessivas falhas. A última resposta do sistema actual é o empreendedorismo. O antigo consumidor passa a ser consumidor-produtor-consumidor. Todo o individuo passa a produzir e a consumir no binómio que se mistura e que se confunde. Produção e consumo fundem-se numa nova forma de ser. Produção e consumo passam a ser um único acto. Isto não seria mau se, primeiramente, a produção fosse orientada e organizada socialmente, e não por impulso individual; e se esta relação produção-consumo libertasse o homem como ser que usufrui a vida e as suas respectivas experiências humanas. O empreendedorismo levará o homem a extinguir-se em relações de mercantilismo. As relações autênticas não cabem nesta nova filosofia. Tudo será mercantilizado e objectificado. No passado mais recente até aos dias de hoje constatamos o óbvio: o empreendedorismo tem levado milhares de indivíduos a produzir inutilidades originais. O mercado está saturado de produtos e serviços. Aos novos empreendedores, para que sobrevivem num mercado cada vez mais desregulado, altamente competitivo, à mercê de tubarões monopolistas, é necessário e obrigatório que apresentem um novo e singular produto. Tem de ser socialmente necessário? Não. Tem de ser original e apelativo e tem de fazer lucro. Milhares de empreendedores vestem gravata e fato-macaco. São patrões e empregados. Laboram sem horários fixos. Não recebem ordenados fixos. Todo o lucro é revertido como capital de investimento. Se não o fizerem, se preguiçarem naquilo que definiram como período de descanso, estarão condenados a perecerem nos escombros do mercado livre. Todo o tempo é dinheiro e é uma corrida pela sobrevivência. Só se produzirá lixo e gerações futuras em desespero. Aqui está o novo mito de Sísifo. O Mito do Empreendedorismo. 

Para concluir. Muito se tem falado sobre empreendedorismo. Ainda hoje passou na televisão um anúncio que dizia algo como:
«os portugueses são aventureiros e empreendedores»
Os telejornais guardam para o fim crónicas sobre empreendedores de sucesso. 
Mais uma vez: muito se tem falado sobre empreendedorismo. Como fórmula mágica para sair do desemprego. Como solução para quem quer sair do emprego que o torna miserável. Contudo, há pormaiores que são omissos. A esmagadora maioria dos indivíduos que opta por se tornar empreendedor precisa de um empréstimo bancário para capitalizar o projecto. Estatisticamente, a esmagadora maioria dos empreendimentos falha no primeiro ano de existência. Isto resulta em dezenas, centenas, milhares de indivíduos que contraíram um empréstimo bancário que os irá sufocar para o resto da vida. Nada disto se tem falado. Outra questão pertinente prende-se no interesse da banca privada. A banca privada vive da especulação, e o produto que se especula é a dívida. Com a crise imobiliário recente, o ganha-pão da banca privada esfumou-se. Esta nova filosofia que se tem espalhado como infecção é exactamente aquilo que a banca privada precisava. Novos empréstimos bancários que criarão novas bolsas de dívidas, e que resultarão, novamente, em especulação. Quantos mais se aventurarem pelo empreendedorismo, mais a banca privada agradece. E acreditamos, sem sombras de dúvidas, que nada disto é por acaso. 
É necessário e urgente compreender que esta nova filosofia é uma mutação dos sistemas regentes. Contudo, e por muita operação de cosmética que desenvolvam, as principais contradições estão lá todas. Para terminar, um facto histórico: esta filosofia só acelerará o suicídio que o sistema capitalista está condenado a cometer. 

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Bloco de Notas #4

Marguerite Duras
Ponto prévio: só leio prefácios após concluir a leitura. Faço do prefácio um posfácio. No interlúdio que vai desde o ponto final da obra literária até ao início do prefácio, faço uma rápida e breve consideração do que acabei de ler. Com O Amante surgiu-me à mente o termo voyeurismo. Não só aquele voyeurismo que é parte da experiência do leitor - especialmente quando lê autobiografias -, mas também aquele voyeurismo de quem escreve e visita a sua vida passada. Ao terminar o livro, e depois de folheá-lo à procura do prefácio-posfácio, foi inevitável encontrar a palavra voyeurismo que exprime sinteticamente aquele manuscrito de Duras. Foi inevitável porque é uma parte integrante do livro. Tão simples quanto isso.

Outra impressão que me surgiu na mente: o livro é uma brutalidade. É uma autobiografia, mas envolta numa áurea tão seca, tão desprovida de acessórios, tão directa e honesta, que deixou de ser um relato de memórias para se transformar numa reflexão introspectiva sobre este sótão que guardamos na cabeça, e que apelidamos de memória. 

Uma pequena reflexão: qualquer um escreve autobiografias. Mas este livro não foi escrito por qualquer um. Marguerite Duras. A escritora rabisca e o leitor consome, e as imagens transcendem-se e materializam-se num invisível celofone. Estamos abandonados, mas libertos, e experimentamos aquela honestidade que é intensa. Só nos resta observar. Não há nada a retirar. 

Conclusão: reconheço uma ideia que surgiu no livro. O amor é violento. É violentamente prazeroso e violentamente triste. Acho que não é descabido afirmar que no amor há uma parte de nós que é violada. E no mundo como o de hoje, e que amanhã será cada vez mais, dar aquele amor genuíno, tão desligado das condições de retrospectividade, é sujeitarmo-nos à violação.

Imagem retirada daqui

quinta-feira, 24 de julho de 2014

Ode à Masculinidade

Nunca gostei de paneleirices. Gosto de ser homem. Gosto de estremecer o estuque com peidos à homem. Gosto de beber cerveja gelada e de mandar arroto. Gosto de dizer «com licença», não para desculpar o arroto. Um «com licença» que podia ser «abram alas» e o arroto em direcção à vertigem dos ecos. Gosto de andar com barba. Barba desgrenhada, desmazelada, uma garunfa de respeito. Gosto de ter pêlos na venta, e no peito, e em todos os centímetros quadrados da minha pele. Gosto, particularmente, de ter pés de chumbo para dançar. Gosto de ter pés de bailarina para o futebol. Uma miniatura de Maradona nascido com pé destro: só Diego pode ser perfeito. Gosto de gostar de futebol. Gosto de mandar caralhadas ao árbitro e à progenitora do árbitro. No final do jogo peço desculpas à progenitora do árbitro. No final do jogo mando outras tantas caralhadas ao árbitro. Gosto de tirar macacos das fossas nasais. Gosto de arredondá-los com o polegar e o indicador e fazer pontaria às coisas. Gosto de mijar em pé. Gosto, depois de uma noitada, com bexiga arredondada de cerveja, mijar às árvores, mijar aos parquímetros, mijar às caixas de multibanco. Gosto de olhar para rabos-de-saia. Gosto de suspirar depois de as contemplar. Contudo, se gosto de rabos-de-saia não é por gostar de ser homem. Haverão outros homens que não apreciam rabos-de-saia. Apreciarão outras tantas coisas e nunca deixarão de ser homens por isso. Mas ainda assim gosto de gostar de rabos-de-saia. Contemplo, distraído, sem noção da indiscrição, respeito, inocência, encolher os ombros, assobiar um quase piropo, suspirar e piscar o olho. Gosto de filmes sem história de amor. Gosto de livros sem história de amor. Gostos de narrativas violentas, secas e cínicas. Gosto de berlindes, matraquilhos e bilhar. Gosto de calduços, pontapés e socos. Gosto de andar à bulha. Gosto de tascas. Gosto de tascas com espinhas e casca de tremoço no chão. Gosto de comer alarvemente. Gosto de encher a pança e palitar os dentes com a unha. Gosto de mandar gargalhadas, e não ter que tapar a boca e contentar-me com risadinhas envergonhadas. Gosto de dizer «merda» e não ter que me preocupar com a falta de respeito. Gosto de rabos-de-saia. Gosto de repetir-me com os rabos-de-saia. Tenho gosto em escrever «rabos-de-saia». Escrevo «rabos-de-saia» e imagino-os logo. Suspiro. Gosto de dormir só de roupa interior. Gosto de acordar e coçar os testículos, a barriga, a barba e a testa. Gosto de tomar um duche só com sabão. Sem sabonetes, cremes e loções. Gosto de me ver ao espelho e espremer a borbulha. Gosto de oferecer a minha mais pura franqueza. Gosto de abraçar um amigo e de afirmar, concludentemente, que gosto dele. Gosto de mandar um gajo à merda se não gostar dele. Gosto desta simplicidade infantil no trato social. Gosto do aperto de mão. Beijinhos é para se dar à mãe e à namorada. Gosto mesmo de rabos-de-saia. Pernil longo, bronzeado, vestido de verão. Suspiro. Gosto deste modo de pensar e sentir a vida. É indescritível. É uma visão sem ornatos e efeitos. Exceptuando quando se trata de rabos-de-saia. Aí somos poetas, líricos e românticos. Rococó de contemplação. O que não gosto mesmo é a confusão que se faz entre a apreciação da masculinidade e o machismo. Gostar de ser homem não me faz ser machista. Afirmo, sem dúvidas, que ser-se machista é não gostar de ser homem. Ser-se machista é próprio das bestas. Ser-se machista é ser um filho da puta reles. Gostar de ser homem para quem é homem, e gostar de ser mulher para quem é mulher, é um salvo-conduto da humanidade. E como sou homem, sustenho o que tenho dito: gosto de ser homem. Nunca gostei de paneleirices.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Monty Python (maioritariamente)

Depois de um dia inteiro a fazer algo inútil, penoso e absurdo, a noite foi preenchida no cinema com o espectáculo dos Monty Python em directo desde Londres. Mais de três horas que souberam a pouco e que me restituíram temporariamente um bem-estar...
Porque a vida ser bem absurda
E a morte a palavra final
Você deve sempre encarar a cortina com uma saudação
Esqueça seu pecado - dê à plateia um sorriso
Desfrute-a - essa é sua última oportunidade mesmo
O contraste entre as duas fases do dia enfatizaram, durante o visionamento espectáculo, uma reflexão existencialista - tema implicitamente recorrente neste blog e em Monty Python. Se alguém pensa que eles são um amontoado de sketchs ridículos sem nenhum sentido, então desengane-se (apesar de ser verdade!). Entre o nonsense surgem frases e/ou sátiras de profunda crítica a tudo o que é relativo à vida. O tom leviano e mundano como dizem as coisas, como se tudo o que falam não tivesse qualquer importância é, ainda hoje, algo refrescante; pois as coisas têm importância, e ao contrário do que é predominante na TV, eles vão além da actualidade sem caírem num vazio de crítica e/ou um descomprometimento niilista.

Monty Python, no final de O Sentido da Vida, concluem o sentido da vida em meia dúzia de palavras e mandam-nos desandar [Piss off]. Noutra cena, de outro filme, e que escolheram para terminar o espectáculo desta noite, o que alguns vêem somente uma provocação gratuita, as palavras da letra foram escolhidas com critério, demonstrando em síntese o que este post tentou transmitir.

Quero dizer - o que você tem a perder?
Você sabe, você vem do nada
Você está voltando para o nada
O que você perdeu? Nada!

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Posicionamento Histórico Pessoal e do Homo Sapiens por Miguel Urbano Rodrigues

A humanidade realizou conquistas prodigiosas no domínio da ciência e da técnica. A vida é hoje totalmente diferente do que era na Atenas de Péricles. Mas o homem do Século XXI não é melhor nem mais inteligente do que eram - apenas dois exemplos - Platão e Aristóteles. O homo sapiens contemporâneo, com as suas virtudes, vícios e aspirações, não difere muito na sua capacidade de amar, sentir e lutar do ateniense do século V A.C., ou do cidadão de Jerusalém da época de Jesus.

O homem novo, por ora, continua a ser uma aspiração, um ser mítico, utópico. O aparecimento rapidíssimo na Rússia de Ieltsin de milhões de homens antigos, com todos os estigmas do capitalismo, requer reflexão.

A transição do capitalismo para o socialismo será muito mais lenta do que Karl Marx previu. 

(...)

Sei que a minha vida útil se aproxima do fim. Mas o meu compromisso como comunista não é com o calendário e sim com os princípios e valores pelos quais me bati – o ideário que conferiu sentido à minha aventura existencial.

Vejo como ingénua a esperança de que as revoluções futuras sejam obra dos movimentos sociais. O espontaneismo não faz história profunda. A luta de classes continua a ser o motor da História. E é ao partido revolucionário marxista-leninista de novo tipo que cabe liderá-la como vanguarda.

No momento não estão criadas as condições subjetivas para revoluções socialistas no futuro imediato. Mas o capitalismo não tem soluções para salvar da destruição o seu monstruoso projeto de dominação universal. Está condenado a desaparecer. Entrou já num lento processo de implosão.

A maré da luta de classes sobe. E a convergência de muitas lutas em muitos países será fatal para o capitalismo. 

in Sobre a Questão do Estado, por Miguel Urbano Rodrigues.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Rescaldo do Mundial de Futebol

Lá se foi o Mundial de Futebol. 

Éramos crianças com cromos da panini na mão e caderneta dobrada em tubo no bolso. Sonhávamos levar, no nosso peito, o escudo nacional aos palcos do mundo. Éramos uns miúdos e o nosso desejo era orgulhar os pais, as gentes do nosso bairro, a malta do nosso povo. 
Crescemos em altura e em idade, e o futebol nunca nos levou aos grandes jogos do mundial. Não faz mal, contentamo-nos com a posição de espectador. Custa-nos ver o símbolo da FIFA. Fingimos por noventa minutos que aquilo não interessa, porque só queremos regressar aos sonhos de infância e juventude. Depois do jogo continuamos a luta contra as federações corruptas que empobrecem o mundo dos povos. 

Há quem goste mesmo de futebol, e nesses a apreciação faz-se pela qualidade de quem joga. Fases ofensivas, defensivas, transições. Contenção, cobertura, compensação. Jogar entrelinhas, dentro do bloco, fora do bloco, dar largura e profundidade, linhas juntas, equipa compacta, tabelinhas, corre e fixa o adversário, liberta a bola no momento certo, no sítio certo. Técnica, criatividade, conhecimento do jogo. Quem gosta mesmo de futebol desejava e ardia pela vitória da Mannschaft Alemã. Quem joga com Müller, Kroos, Götze, Lahm, Özil e Hummels só pode vencer merecidamente o maior troféu de futebol à escala mundial. 

Assim que soou o apito inicial da final do mundial de futebol de 2014, veio-nos à cabeça: É a Argentina! 
Caramba! É a Argentina! A alviceleste! É aquele país onde está a fantástica Buenos Aires! É a país da prata. É a Argentina das mulheres bonitas. É Argentina do tango! Versão de fado com sensualidade. Argentina do Comandante Ernesto Guevara de la Serna! É a Argentina dos desenhos de Quino. É a Argentina que entoa Carlos Gardel! Caramba! É a Argentina das Malvinas! É a Argentina dos argentinos. É a Argentina do deus Maradona. Argentina do Diego Armando Maradona. Argentina do El Pibe Maradona. É a Argentina de Pablito Aimar, Javier Saviola, Nicolás Gaitán, Ezequiel Garay e Enzo Pérez. É também a Argentina de Lucho González. É verdade. Lionel Messi. É a Argentina dos génios canhotos. A Argentina MM. Argentina Maradona e Messi

E é assim. A cabeça diz-nos Alemanha. O coração fala-nos em Argentina, Argentina, Argentina. Mas ganhou a Alemanha. Parabéns à melhor equipa. Um grande abraço aos companheiros argentinos: para mim serão sempre os maiores. Trata-se da Argentina dos meus sonhos de criança.


domingo, 13 de julho de 2014

Charlie Haden

Demorei a compreender porque me perturbou tanto. Passei a manhã inteira a ouvir e a ler sobre ele, a ultrapassar este desaparecimento. Morreu Charles Haden!

Na noite anterior tinha lido isto, mas não me apercebi...

Há muito que era o baixista que me desafiava mais no Jazz, sem compreender se gostava ou não dele, se me tocava realmente ou apenas me fazia confusão. Seu estilo decidido e imparável, mesmo quando nas músicas mais calmas e composições de toque evidentes, havia algo que achava não bater certo... era uma tensão constante, um flutuar tenso pela harmonia sempre com o entoar decidido e imparável do baixo de Haden.

Há tempos percebi que ele era o branco que tocava nos álbuns do Ornette Coleman! Ouvia-os sem saber quem ele era, ignorando a sua importância. Frenéticos. Esses álbuns ajudam-me agora a compreender o que me fazia confusão em Haden. Vejo um bocado os baixistas de Jazz como aqueles que fazem de corda e rede em simultâneo para a banda passar, mas Haden não era rede, e se fosse corda ela estaria bamba. Se a banda quisesse sobreviver à queda teria voar ou cair com ele, e arriscavam-se a ser embrulhados numa luta de vai ou racha. Mais ou menos isso.

Só agora, que morreu, é que percebi o valor que me tem. Ainda por cima, ele tem uma das histórias mais fascinantes relativamente à história do Jazz em Portugal...


Até amanhã, camarada!

sábado, 12 de julho de 2014

Centelhas que ainda Faíscam #1

[Father:] Hey Kids!

[Kids:] Hey Dad!
[Father:] What'da want to do today?
[Kids:] We don't know.
[Father:] Wanna go to the matinee?
[Kids:] NO!
[Father:] Wanna go to the Amusement Park?
[Kids:] NO!
[Father:] Wanna go to the punk rock  show?
 [Kids:] Yeah! Let's go to the punk rock show!
 (The Separation Of Church and Skate, NOFX)

Já conhecia, parcialmente, o trabalho do foto-jornalista Josu Trueba Leiva. O projecto que desenvolveu em 2010 é uma bonita homenagem ao movimento Punk e a Cuba. 
Deixamos aqui a primeira parte do projecto, Al Son del Punk, para a contemplação dos interessados:

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Bloco de Notas #3

"Numa época em que todos passam o pé, eu dizia a mim mesmo que ao menos aquela mulher seria sólida como a terra, sobre a qual podemos construir ou deitarmo-nos. Teria sido belo recomeçar o mundo com ela numa solidão de náufragos."
(O Golpe de Misericórdia, página 88, Marguerite Yourcenar)
Um livro que se lê num só dia, e que fiz por prolongar mais um bocado num deleite de quem só quer adiar o fim. Não sendo particularmente apreciador de obras românticas, deixei-me levar, desprevenido, por esta tragédia de adolescentes que se encontravam num clima complicado, em total desespero alucinante. Contudo, o que me agarrou como leitor foi a profundidade psicológica que caracteriza os dois protagonistas principais. É uma extraordinária obra da escritora belga. 
A situação que nos é descrita é anedótica e absurda. Abundante em contradições inteligentes, ao mesmo tempo que nos alicia com uma escrita carregadinha de humanidade. 
A escritora, no seu prefácio, recomenda que nos devemos concentrar "(...) no valor do documento humano, e não político (...)"que o livro tem. Não me foi difícil fazê-lo. A escrita passou-me por cima do resto. 

terça-feira, 8 de julho de 2014

Visão de uma Lisboa Desistida


Do Intendente sem putas ao Cais do Sodré sem putas a pé. Caminhando com passo largo, acompanhado por uma amizade honesta mas descartável, trocávamos a segurança dos passeios pelas estradas. Já foi tudo fodido. Como é bela Lisboa! Do charmoso degredo de edifícios escuros da Almirante Reis ao charmoso degredo de fachadas iluminadas da Baixa. Calçada forrada de jazigos de cartão e cheiro de futuro desistido. Preferimos o risco de sermos dilacerados por um automóvel embriagado. Descartáveis. Constatar a realidade, isto é, absorver as feições que dormem nas fachadas, não é força motriz de quem corre para o futuro, para o último eléctrico ou comboio da noite.

- É melhor correres senão perdes o comboio

Caminhando pela Baixa com passo largo, acompanhado pelos edifícios iluministas e que a burguesia em ascensão outrora mandou construir, absorvo as raízes que sobram e seguram a Cidade até ao próximo comboio. Como é bela Lisboa! Além de madeira e argamassa, o futuro era outro dos elementos de construção que a classe dominante usava. Mas deixou de usar. Haxixe? Não, obrigado.

O torniquete impediu-me de apanhar a tempo o comboio. Sou descartável. Fiquei à espera do próximo e último. Sozinho, e um segurança só que complementava a linha de torniquetes. Fundamental. Pouco se ouve da cidade. A fila de lâmpadas no tecto falso fazem um contínuo zumbido. Aragem húmida e fresca no pescoço e a vista num grupo de pernas nuas de tenra lascívia. Está tudo fodido. Agora esperam o comboio mais dois além de mim. O rapaz enrola erva. O homem enrola a cabeça entre os braços. Esperam em gestos de futuro desistido. Quererão realmente apanhar o comboio?

Pouco se ouve da cidade. Apenas gritinhos estridentes que as carnes por fecundar fazem. Chega o comboio e jorra as últimas pernas na noite. Como é bela Lisboa! Lasciva. Entra-se nas carruagens em movimentos de futuro desistido. Não sei se a Cidade nos descartou ou se nós a descartamos ao introduzirmo-nos entorpecidos no comboio.

Da janela surgem duas construções. São as próximas fachadas da sede da companhia de electricidade. Destoam em altura e em história o rio e não durarão além de meia-dúzia de décadas. Penetrando a aparência vislumbra-se que não têm raízes e não têm em conta o comboio. Aço e vidro de fachadas-marketing da aparência pela aparência. Descartáveis.

Mais jazigos de cartão ocupados. Junto, mais jazigos de alvenaria sem corpos dentro! Descartáveis. Entorpecidos com álcool enrolado dentro da cabeça enrolada entre os braços enrolados nas fachadas enroladas pelos sons e sonhos desistidos.

- Seu bilhete sffv. obrigado

A Cidade só resistirá como Lisboa quando deixarmos de evitar tomar consciência dela. E de nós, que lhe damos vida. Não fosse a cidade uma fôrma da forma como somos. Só resistirá se a tomarmos como nossa e a resgatarmos desta classe predominante que tudo torna descartável. Predominarmos nós, finalmente, que sempre fomos a raiz da Cidade. Trabalhadores! Não fosse a luz da cidade pintada com nossas mãos. Não tivesse Lisboa a forma da fôrma que lhe somos.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Crónica de um Escritório

Escritório de mesas emparelhadas, relógio a dar o fim da transmissão, cérebros radiofónicos que labutam em frequência invariável, os colegas levantam-se em debandada, murmúrios monocórdicos
- até amanhã
murmúrios que nos assaltam aos ouvidos, pés que se arrastam, solas opacas, vestir o casaco
- até amanhã
casacos cinzentos em pessoas cinzentas
- até amanhã
gentes sem olhos boca nariz, gente coisificada, dispersa em massas indefinidas, arrastamentos de um tempo apático
- até amanhã
A nossa mesa só jarro e flor, pequena, alegre, vistosa, pequena flor, pequena planta que sorve água, bebericando, inundando-se, baptizando-se, renascendo-se em água, e um sol que acompanha a janela, movimento aparente, luz que se faz deslizar no tampo da mesa, a flor, pequena, vistosa, à luz, à sombra, duplo estado de completa existência, dado que olhamos o jarro e flor e sensação de harmonia, e quem nos vê
- até amanhã
supondo que alguém nos vê, conforme passam por nós, sem olhos boca nariz
- até amanhã
mas supondo que alguém nos vê, a nossa face rasgada em sombra, ininterrupta penumbra que nos turva a visão
(admite que turva a realidade para melhor aceitar a impotência que sente em tomar rédeas da sua vida)
uma retina ofuscada, sem brilho, toda uma negritude sem projecção para o porvir, e curvamos o olhar para o que resta do escritório de mesas emparelhadas e vazias, ecos de um relógio esgotado de sentido, e quando nos vemos sozinhos tiramos garrafa e copo da mala, e de trago em trago olhos que embaciam, e se a princípio medíamos a conta em dedos deixámos de o fazer para começar a entornar garrafas em copos cheios, e de trago em trago os olhos soluçam, e de trago em trago a garrafa vazia, de passos trocados prostramo-nos de joelhos, levantamo-nos, arrumamos copo e garrafa, o sol já era, a noite em potência, a noite que nos espera, mais garrafas, mais copos, fisgamos um último olhar ao jarro e à flor, olhar hesitante, olhos baços, olhos em cataratas ébrias, solas opacas, casaco cinzento, murmúrio gaguejado
- até amanhã

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Bloco de Notas #2

"Uma noite, quantas madrugadas tem? Andas a contar? Eu não. Lhes apanho só, conforme lhes vejo e sinto. Atrevo: uma só noite tem bué de madrugadas; cada uma dessas madrugadas tem bué de brilhos. Confesso-me aqui, nos lábios da sinceridade: gosto muito disso - acreditar no impossível das palavras, lhes maltratar no português delas, ser livre na boca das estórias em deixar estar aqui, sentado dentro de mim, abismático. E sonhar!, sonhar até chegar nesse quintal onde dentro de mim nascem barulhos e não só: nascem brilhos. Vejo búzios que se riem à toa e aprendo: posso descansar as vozes como se fossem conchas de pousar na areia depois de lhes apanhar numa noite de lua brilhante. Depois do barulho das vozes os búzios se calam e eu, no respeito, me calo também."  (Quantas Madrugadas Tem a Noite - Ondjaki, página 110)

Comentei em baixo:
 «As nossas noites levam uma infinidade de madrugadas e lusco-fusco, varinha mágica, ideias soltas: parir insónias e não haver copos nem avilo a quem contar estórias. Ondjaki é poeta que se arranca da terra em estado puro. Esqueçam os outros diamantes, e desenterremos estes diamantes, Angola estaria muito melhor.»


quarta-feira, 18 de junho de 2014

Sr. Romeulloy II (Conto)

Sentei-me. Traseiras do Liceu. Na pista de atletismo virado para o campo de futebol. Estou concentrado em mim, somente em mim, embora o chilrear dos pássaros vão ficando mais nítidos e bonitos. Pego a minha mão do bolso, elevo-a com os canos de dedos à nuca e puxo o gatilho. Imaginário. Oiço um estoiro brutal. E concreto. Tons cinza e mancha vermelha. Sorrio. Fica silêncio e paz. A respiração volta ao normal. Não tenho arma. Se tivesse o gatilho seria concreto para mim. E o estoiro também. Nem pretendia ter a arma. Só sentir por momentos o poder de me poder estoirar acalmava-me para suportar a próxima aula.

Sentei-me. Sala de aula. Na minha cadeira da linha de montagem virado para a ardósia. Estou concentrado em mim, somente em mim, meu cérebro em sobre-reflexão é muito mais interessante e intenso que a aula. Concentrado em mim, somente em mim. O chilrear dos colegas ficando mais frívolos e hostis. Paredes e vozes em tons de sépia debruçam-se sob mim. Encho-me de ansiedade, engasgo-me tentando respirar. Aflito. Temendo que o toque da saída venha tarde demais. Pretendo a arma. Se não fosse tão preguiçoso arranjaria uma arma. Dizem que é fácil obter uma. Nada é fácil. Somente pensar, imaginar, reflectir. Sofrer. Numa palavra: frívolo. Tão frívolo quanto os meus colegas. É isso que é quem sofre concentrado somente em si. A linha de montagem cujo professor é adereço não ajuda. Ele desumanizou-se por dar aulas. Professor. Em contraste com o pó de giz na ardósia desenhava-se-lhe a silhueta e o casaco cor de sombra. Nem Pitágoras nem Camões nos alimentam de arte nos momentos em que se encosta os canos à nuca... e Rimmm rrrrimmmm rimmm e sou o primeiro a sair da sala de aula e a respirar liberdade.

Sentei-me no chão. Na rua. Só. E os meus amigos. Colegas. Emberbes. Chilreavam cada vez mais difusamente quando... Universo
Foi como
nada
tudo até
tão bonita
Ela
mais nada
foi como
tudo
mais nada
Era ela
mais nada
tudo ali
tão bela
só ela
Universo. Deixei de pensar e voltei a existir. Cor! Cores vivas! Sorriso vivo! Olhos castanhos avelã vivos como só nos dela vira antes. Pincelava os tons sépia em sua volta de todas as cores. E não interessava se era frívola. Enquanto ela se afastava da minha contemplação um rasto colorido deixava. A sua existência tão viva definia nitidamente, com a mais bela mistura de cores, a linha de montagem, desde a ardósia à minha primeira mais profunda solidão.

Sentado. Nas traseiras do que for. Os dias repetiam-se em ciclo quase nos mesmos tons. Aulas de claustrofobia. Intervalos com canos de dedos na nuca e ao fundo o mais belo trilho de cor. Assim sucessivamente.

Sentado. Na solidão. Sem nunca ter caminhado e transformado aquele rasto colorido num trilho que me deixasse em azul vivo mergulhado em castanho avelã. Preso. Entre o sonho e a vida. E nada foi tudo o que para sempre ficou. Além de uma perna que começou a ficar maior que a outra.

Link para Sr. Romeulloy

quinta-feira, 12 de junho de 2014

As Bestas do Passado

Quando a Lua Cheia se derrama na noite, uma coisa enorme, escura em tons esverdeados, debruçada no que parece ser um sono profundo, umas costas que se expandem como uma bolha para logo desincharem num corpo disforme, e escondidos no véu de erva alta, os nossos olhos espiam o inacreditável, e se o vento espirra frio na nossa nuca trememos violentamente, sem perceber se trememos pela temperatura ou pelo pavor dado que o lábio treme e num impulso mordemo-lo porque temos receio de fazer a pergunta e acocorados, os punhos fecham-se tanto que os nós dos dedos ficam brancos como blocos de gelo, e rasga-se uma ideia, ou o que se parece com uma ideia, dado que nesta ilha ou somos nós ou é a besta, e enquanto a consciência ganha corpo, na esquina dos nossos olhos, vemos Simão dobrado num choro e Maurício em debandada, é a constatação que neste confronto, homem e besta, estamos sozinhos, quase pelados, calções em tiras finas, pele gretada, cabelo enovelado em imundície, um facalhão manchado com sangue de bácaro selvagem, o reflexo da Lua na nossa retina é a sina da loucura que nos toma o juízo nem sei se são os teus olhos que se desviam ou se estás a pensar no nosso irmão dado que estamos à espera do avião e sentimos o lábio tremer e é-nos tão difícil reconhecer o dia em que nos despenhámos nesta ilha, sós, da inocência à barbárie num lapso de tempo, o suficiente para entender a fragilidade das nossas dependências
(quando puder desenvolva essa ideia da fragilidade das suas dependências ou por outro lado explique a fragilidade da sua independência)
conforme a roupa, camisa, calções, sapatos desfiados e inúteis, somos selvagens, carne crua, diarreia e grunhos, confrontados com o absurdo, homens e besta, e a coisa enorme que incha e desincha, todo um volume que dá sombra às árvores, e entre nós e a ilusão da sobrevivência, um facalhão pesado, preso ao que resta da indumentária, conforme estamos presos à solidão, entrecortada com os soluços de Simão e o rastejar fugidiço de Maurício, e é quando nos lembramos do dia em que nosso irmão morreu, e mais do que o morto o que nos reteve na memória foi os vivos que ficaram, como quando percebemos que o nosso pai já não nos olhava, dado que a morte enganou-se, trocou-lhe os filhos, o favorito foi-se e ficámos nós, e entre nós e a besta, a diferença atenua-se numa miséria da condição existencial
(a sua condição existencial é a descrença do valor que possui dado que continua a projectar nos outros a validade da sua existência)
e enquanto a Lua Cheia faz-se valer no dorso da besta, levantamo-nos do véu de erva alta, com o facalhão enterrado no chão, junto ao desamparado Simão, e seguimos passo a passo, sem peso, sem restolho, uma brisa que surge e abana as ramagens do arvoredo que nos envolve, levamos a mão ao cabelo comprido e puxamo-lo para trás, e nisto sentimos que a besta está envolvida num zumbido de milhares de moscas, moscas esverdeadas, varejeiras, enormes, um zumbido que estrilha os tímpanos, e a besta, o deus das moscas, de olhos enormes, dardos vermelho baço, sem luz, abertos, aguçados para nós, e nos nossos olhos ainda o reflexo selvagem da loucura, sentamo-nos a dois palmos da besta, de punhos fechados, sem tremuras no lábio.

Receámos perguntar-te mas dado que não nos dizes nada não nos surge outra coisa que não perguntar directamente o que não queríamos dizer
- pai preferias que eu tivesse dado a vida pelo teu outro filho?

segunda-feira, 9 de junho de 2014

A Responsabilidade dos Jornalistas: As Mentiras que Matam Milhões

Recordamos o livro «Os Sequestrados de Altona», de Sartre, e assalta-nos à cabeça uma imagética: o tribunal de caranguejos que julgarão, à luz do passado, a humanidade. No rodopio da imaginação, sonhamos com magistrados-crustáceos gigantes com antenas perscrutadoras da verdade, e no foco do julgamento uma trupe de gente mirrada, olhos hesitantes, rubor de bochechas. Chamados à audiência, como tantos outros que já foram e tantos outros que ainda o serão, os jornalistas. 
Sem processo kafkiano, um julgamento célere:
CULPADOS
Vós sois CULPADOS
Vós sois a vergonha.
A mentira tem perna curta.
O revisionismo histórico tem perna curta.
A deturpação, corrupção, logro, intrujice, filha da putice, tudo com perna curta. 
E somos nós que vos encurtamos as pernas. De passo em passo, vão de encontro à sentença: culpados.

Para quem desenvolveu consciência sobre o assunto, percebe que a comunicação social faz parte da máquina repressora de um Estado digno do que é: um Estado. Não há novidade. Muitos intelectuais se debruçaram sobre a matéria [1].
Éramos uns pirralhos quando a professora
stôra
senhora professora doutora
sobreexcelência chanceler eminência
vaquinha cabrinha putinha
nos dizia, da sua perspicaz erudição académica, que o «poder está na comunicação social».
Está? Sabemos que não. Como a mentira, a ideia estúpida também tem a perna curta. A comunicação social é um tentáculo, e não o polvo em si. Há outros tentáculos: justiça, segurança, instituições estatais, etc.. Perguntamo-nos: mas o Estado é o fim em si? Obviamente que não. O Estado é uma abstracção de algo que o supera. O Estado é um vassalo da intencionalidade. Sejamos directos: o Estado burguês é um instrumento do Grande Capital. Outros Estados serão instrumentos de outras intenções. Em remate, afirmamos convictamente que a comunicação social é uma vassala de uma hierarquia de vassalagem. Mas se a comunicação social é o que é, então é justo prolongar a sentença aos assalariados jornalistas? E é aqui que escorregamos na dúvida. Se por um lado compreendemos que os assalariados também são vítimas, por outro lado ficamos indignados com o papel que representam. Dentro da classe dos jornalistas, há quem se esforce para repôr a honestidade da profissão. Os outros, a maioria, continuam a abandalhar as responsabilidades. E esses trazem as mãos enxaguadas em sangue. São carrascos. Espalham a mentira. Morrem milhões e as notícias fluem nos alardes da mentira. Carrascos. 

Aos que abandalham as responsabilidades, alagados de pútrida morte, não terão julgamento com crustáceos gigantes. Não serão caranguejos a julgar a humanidade. Serão os homens, com as suas vozes humanas, com dedos humanos em riste, com consciência humana, que dirão, à trupe dos mentirosos:
CULPADOS.

[1] Recomenda-se a leitura de Manufacturing Consent de Edward S. Herman e Noam Chomsky
Imagem retirada daqui

sábado, 7 de junho de 2014

Agradecemos esta maldade avinagrada àquele que imaginamos ser o nosso único leitor. Incauta recomendação!

Será boa altura para finalmente anunciar que demos vida à nossa página no facebook. Ela não substitui de maneira nenhuma o blog, é um complemento. Aqui sim, o Da Peste à Centelha tem a sua raiz ou aparenta ter uma. É dúbio.
https://www.facebook.com/Pestecentelha
Sejam bem-vindos.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Sr. Romeulloy [conto – versão definitiva]


Tenho uma perna maior que a outra. Ou o chão é inclinado. Não sei. O tamanho da perna sei que não será exactamente igual à outra, mas será isso que me desequilibra para um lado? Talvez a ligeira vertigem lateral se deva a isso. No entanto estou de tronco inclinado para a frente, observo o chão de cima, olho os meus pés, e um estará mais abaixo e outro mais acima. O pé abaixo está mais abaixo em relação ao mais acima, o de cima está mais acima do que o que está mais abaixo. Assim parece. Excepto se for o chão que se inclina e, em vez de um desalinho, há antes um alinhar de alturas em relação a um referencial que não vislumbro. Isto de precisar de uma referência comparativa é limitador a uma análise. Em referência contra o chão escolheria um objecto recto, e contra os pés escolheria algo não recto. Talvez um pato, sem bico. Mas estará o chão torto? Terei os pés em bico? Ou será antes inclinado o referencial que nem vislumbrei ainda? Certo é que algo não está direito. E daí, não sei. Saberá alguém se é do chão, dos pés, das pernas, ou de outra existência mais? Será da coluna? Não sei se a tenho devidamente alinhada! Na minha idade, penso que não a terei. Mas estará a coluna dessa outra pessoa direita? Qualquer das causas pode ser a explicação para o desalinho vertiginoso enquanto olho o chão. Sinto. Um pé maior que o outro não desalinharia o chão. Qual seria a causa? Teria um deles podido desenvolver-se mais por desalinho do sapateiro tal como certos peixes que crescem proporcionalmente ao tamanho do aquário? É certo que não sei. E daí, talvez nem isso seja garantido. Ponho fora de possibilidade eu ter ao fundo das pernas dois peixes. Entenda-se: um ao fundo de cada perna. Não, eu não posso ter dois peixes em vez de pés, isso é certo, senão, à noite não conseguiria dormir com o cheiro. Enjoo. Virá daí a náusea que me revira o balanço? Olho o chão, olho melhor, e nada concluo. Danço! Não, estou parado. Incerto se danço ou se permaneço de pernas e tronco hirtos perfazendo um ângulo de noventa graus. Talvez sejam duzentos e setenta os graus. Não estou certo. Que terá entortado a coluna? A mochila da escola? Era pesada. Se calhar nem era. Mudava periodicamente de ombro para as torções na espinha se equilibrarem ao final do ano lectivo. Mas não estou certo de ter distribuído justamente o peso. E agora que o sinto, lembro que tenho um testículo maior que o outro. É o direito. A mochila terá sido repartida pelos ombros tendo em conta a relação entre testículos? Não, não foi. Nem me lembro se foi. E agora não sei qual dos testículos é o maior. É o esquerdo. Não sei. Confirmaria com a devida apalpação, mas desequilibrar-me-ia. Não é que eu saiba onde tenho as mãos, mas sei que me revelaria ao chão. Ao menos se rebolasse ficaria a saber que ele é inclinado. Mas, pensando bem, nada mais tomaria conhecimento quanto aos meus pés, pernas, coluna, ou, já não me lembro das outras possíveis variáveis às vertigens. Lembrei! Lembrei! Era os pés, as pernas e a coluna. Lembrei! Contudo, estou certo que ando esquecido. Qual era o ponto de partida de tudo isto? Ajudar-me-ia sabê-lo?! Recordo então que foi, salvo erro, eu não conseguir dormir com peixes nos pés. Se é que não sonhei com isto. Não sei. De erros ninguém está a salvo. Certo é que tenho um testículo maior que o outro em relação a um referencial que não vislumbro. Mas com o chão inclinado como está, nada conseguirei vislumbrar. Um pé maior que uma sapateira, acho que falei em sapateira. Ou terá sido antes em sapateiro? Com isto tudo perdi-me da minha namorada. Tenho namorada? Será aquela ali? É ela! Não sei. Se calhar preciso dela como de uma bengala. Não tenho pernas, penso. Isso explica muita coisa. Onde está a minha namorada quando preciso dela? Preciso, se ela for direita. Se for torta não será um bom referencial. Ou então não o é se for direita. É importante um referencial para o próprio referencial. Ou bastará fixar um qualquer? Acho que tenho um pé maior que o outro. E daí, não sei. Mas preciso dela, da minha namorada. Se é que tenho uma. Quero-a, mesmo que não tenha nenhuma. Preciso dela. Serei viúvo? Se calhar a viúva é ela. Mas preciso da minha enamorada. Usá-la-ei como calço.