quarta-feira, 18 de junho de 2014

Sr. Romeulloy II (Conto)

Sentei-me. Traseiras do Liceu. Na pista de atletismo virado para o campo de futebol. Estou concentrado em mim, somente em mim, embora o chilrear dos pássaros vão ficando mais nítidos e bonitos. Pego a minha mão do bolso, elevo-a com os canos de dedos à nuca e puxo o gatilho. Imaginário. Oiço um estoiro brutal. E concreto. Tons cinza e mancha vermelha. Sorrio. Fica silêncio e paz. A respiração volta ao normal. Não tenho arma. Se tivesse o gatilho seria concreto para mim. E o estoiro também. Nem pretendia ter a arma. Só sentir por momentos o poder de me poder estoirar acalmava-me para suportar a próxima aula.

Sentei-me. Sala de aula. Na minha cadeira da linha de montagem virado para a ardósia. Estou concentrado em mim, somente em mim, meu cérebro em sobre-reflexão é muito mais interessante e intenso que a aula. Concentrado em mim, somente em mim. O chilrear dos colegas ficando mais frívolos e hostis. Paredes e vozes em tons de sépia debruçam-se sob mim. Encho-me de ansiedade, engasgo-me tentando respirar. Aflito. Temendo que o toque da saída venha tarde demais. Pretendo a arma. Se não fosse tão preguiçoso arranjaria uma arma. Dizem que é fácil obter uma. Nada é fácil. Somente pensar, imaginar, reflectir. Sofrer. Numa palavra: frívolo. Tão frívolo quanto os meus colegas. É isso que é quem sofre concentrado somente em si. A linha de montagem cujo professor é adereço não ajuda. Ele desumanizou-se por dar aulas. Professor. Em contraste com o pó de giz na ardósia desenhava-se-lhe a silhueta e o casaco cor de sombra. Nem Pitágoras nem Camões nos alimentam de arte nos momentos em que se encosta os canos à nuca... e Rimmm rrrrimmmm rimmm e sou o primeiro a sair da sala de aula e a respirar liberdade.

Sentei-me no chão. Na rua. Só. E os meus amigos. Colegas. Emberbes. Chilreavam cada vez mais difusamente quando... Universo
Foi como
nada
tudo até
tão bonita
Ela
mais nada
foi como
tudo
mais nada
Era ela
mais nada
tudo ali
tão bela
só ela
Universo. Deixei de pensar e voltei a existir. Cor! Cores vivas! Sorriso vivo! Olhos castanhos avelã vivos como só nos dela vira antes. Pincelava os tons sépia em sua volta de todas as cores. E não interessava se era frívola. Enquanto ela se afastava da minha contemplação um rasto colorido deixava. A sua existência tão viva definia nitidamente, com a mais bela mistura de cores, a linha de montagem, desde a ardósia à minha primeira mais profunda solidão.

Sentado. Nas traseiras do que for. Os dias repetiam-se em ciclo quase nos mesmos tons. Aulas de claustrofobia. Intervalos com canos de dedos na nuca e ao fundo o mais belo trilho de cor. Assim sucessivamente.

Sentado. Na solidão. Sem nunca ter caminhado e transformado aquele rasto colorido num trilho que me deixasse em azul vivo mergulhado em castanho avelã. Preso. Entre o sonho e a vida. E nada foi tudo o que para sempre ficou. Além de uma perna que começou a ficar maior que a outra.

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