segunda-feira, 30 de junho de 2014

Bloco de Notas #2

"Uma noite, quantas madrugadas tem? Andas a contar? Eu não. Lhes apanho só, conforme lhes vejo e sinto. Atrevo: uma só noite tem bué de madrugadas; cada uma dessas madrugadas tem bué de brilhos. Confesso-me aqui, nos lábios da sinceridade: gosto muito disso - acreditar no impossível das palavras, lhes maltratar no português delas, ser livre na boca das estórias em deixar estar aqui, sentado dentro de mim, abismático. E sonhar!, sonhar até chegar nesse quintal onde dentro de mim nascem barulhos e não só: nascem brilhos. Vejo búzios que se riem à toa e aprendo: posso descansar as vozes como se fossem conchas de pousar na areia depois de lhes apanhar numa noite de lua brilhante. Depois do barulho das vozes os búzios se calam e eu, no respeito, me calo também."  (Quantas Madrugadas Tem a Noite - Ondjaki, página 110)

Comentei em baixo:
 «As nossas noites levam uma infinidade de madrugadas e lusco-fusco, varinha mágica, ideias soltas: parir insónias e não haver copos nem avilo a quem contar estórias. Ondjaki é poeta que se arranca da terra em estado puro. Esqueçam os outros diamantes, e desenterremos estes diamantes, Angola estaria muito melhor.»


quarta-feira, 18 de junho de 2014

Sr. Romeulloy II (Conto)

Sentei-me. Traseiras do Liceu. Na pista de atletismo virado para o campo de futebol. Estou concentrado em mim, somente em mim, embora o chilrear dos pássaros vão ficando mais nítidos e bonitos. Pego a minha mão do bolso, elevo-a com os canos de dedos à nuca e puxo o gatilho. Imaginário. Oiço um estoiro brutal. E concreto. Tons cinza e mancha vermelha. Sorrio. Fica silêncio e paz. A respiração volta ao normal. Não tenho arma. Se tivesse o gatilho seria concreto para mim. E o estoiro também. Nem pretendia ter a arma. Só sentir por momentos o poder de me poder estoirar acalmava-me para suportar a próxima aula.

Sentei-me. Sala de aula. Na minha cadeira da linha de montagem virado para a ardósia. Estou concentrado em mim, somente em mim, meu cérebro em sobre-reflexão é muito mais interessante e intenso que a aula. Concentrado em mim, somente em mim. O chilrear dos colegas ficando mais frívolos e hostis. Paredes e vozes em tons de sépia debruçam-se sob mim. Encho-me de ansiedade, engasgo-me tentando respirar. Aflito. Temendo que o toque da saída venha tarde demais. Pretendo a arma. Se não fosse tão preguiçoso arranjaria uma arma. Dizem que é fácil obter uma. Nada é fácil. Somente pensar, imaginar, reflectir. Sofrer. Numa palavra: frívolo. Tão frívolo quanto os meus colegas. É isso que é quem sofre concentrado somente em si. A linha de montagem cujo professor é adereço não ajuda. Ele desumanizou-se por dar aulas. Professor. Em contraste com o pó de giz na ardósia desenhava-se-lhe a silhueta e o casaco cor de sombra. Nem Pitágoras nem Camões nos alimentam de arte nos momentos em que se encosta os canos à nuca... e Rimmm rrrrimmmm rimmm e sou o primeiro a sair da sala de aula e a respirar liberdade.

Sentei-me no chão. Na rua. Só. E os meus amigos. Colegas. Emberbes. Chilreavam cada vez mais difusamente quando... Universo
Foi como
nada
tudo até
tão bonita
Ela
mais nada
foi como
tudo
mais nada
Era ela
mais nada
tudo ali
tão bela
só ela
Universo. Deixei de pensar e voltei a existir. Cor! Cores vivas! Sorriso vivo! Olhos castanhos avelã vivos como só nos dela vira antes. Pincelava os tons sépia em sua volta de todas as cores. E não interessava se era frívola. Enquanto ela se afastava da minha contemplação um rasto colorido deixava. A sua existência tão viva definia nitidamente, com a mais bela mistura de cores, a linha de montagem, desde a ardósia à minha primeira mais profunda solidão.

Sentado. Nas traseiras do que for. Os dias repetiam-se em ciclo quase nos mesmos tons. Aulas de claustrofobia. Intervalos com canos de dedos na nuca e ao fundo o mais belo trilho de cor. Assim sucessivamente.

Sentado. Na solidão. Sem nunca ter caminhado e transformado aquele rasto colorido num trilho que me deixasse em azul vivo mergulhado em castanho avelã. Preso. Entre o sonho e a vida. E nada foi tudo o que para sempre ficou. Além de uma perna que começou a ficar maior que a outra.

Link para Sr. Romeulloy

quinta-feira, 12 de junho de 2014

As Bestas do Passado

Quando a Lua Cheia se derrama na noite, uma coisa enorme, escura em tons esverdeados, debruçada no que parece ser um sono profundo, umas costas que se expandem como uma bolha para logo desincharem num corpo disforme, e escondidos no véu de erva alta, os nossos olhos espiam o inacreditável, e se o vento espirra frio na nossa nuca trememos violentamente, sem perceber se trememos pela temperatura ou pelo pavor dado que o lábio treme e num impulso mordemo-lo porque temos receio de fazer a pergunta e acocorados, os punhos fecham-se tanto que os nós dos dedos ficam brancos como blocos de gelo, e rasga-se uma ideia, ou o que se parece com uma ideia, dado que nesta ilha ou somos nós ou é a besta, e enquanto a consciência ganha corpo, na esquina dos nossos olhos, vemos Simão dobrado num choro e Maurício em debandada, é a constatação que neste confronto, homem e besta, estamos sozinhos, quase pelados, calções em tiras finas, pele gretada, cabelo enovelado em imundície, um facalhão manchado com sangue de bácaro selvagem, o reflexo da Lua na nossa retina é a sina da loucura que nos toma o juízo nem sei se são os teus olhos que se desviam ou se estás a pensar no nosso irmão dado que estamos à espera do avião e sentimos o lábio tremer e é-nos tão difícil reconhecer o dia em que nos despenhámos nesta ilha, sós, da inocência à barbárie num lapso de tempo, o suficiente para entender a fragilidade das nossas dependências
(quando puder desenvolva essa ideia da fragilidade das suas dependências ou por outro lado explique a fragilidade da sua independência)
conforme a roupa, camisa, calções, sapatos desfiados e inúteis, somos selvagens, carne crua, diarreia e grunhos, confrontados com o absurdo, homens e besta, e a coisa enorme que incha e desincha, todo um volume que dá sombra às árvores, e entre nós e a ilusão da sobrevivência, um facalhão pesado, preso ao que resta da indumentária, conforme estamos presos à solidão, entrecortada com os soluços de Simão e o rastejar fugidiço de Maurício, e é quando nos lembramos do dia em que nosso irmão morreu, e mais do que o morto o que nos reteve na memória foi os vivos que ficaram, como quando percebemos que o nosso pai já não nos olhava, dado que a morte enganou-se, trocou-lhe os filhos, o favorito foi-se e ficámos nós, e entre nós e a besta, a diferença atenua-se numa miséria da condição existencial
(a sua condição existencial é a descrença do valor que possui dado que continua a projectar nos outros a validade da sua existência)
e enquanto a Lua Cheia faz-se valer no dorso da besta, levantamo-nos do véu de erva alta, com o facalhão enterrado no chão, junto ao desamparado Simão, e seguimos passo a passo, sem peso, sem restolho, uma brisa que surge e abana as ramagens do arvoredo que nos envolve, levamos a mão ao cabelo comprido e puxamo-lo para trás, e nisto sentimos que a besta está envolvida num zumbido de milhares de moscas, moscas esverdeadas, varejeiras, enormes, um zumbido que estrilha os tímpanos, e a besta, o deus das moscas, de olhos enormes, dardos vermelho baço, sem luz, abertos, aguçados para nós, e nos nossos olhos ainda o reflexo selvagem da loucura, sentamo-nos a dois palmos da besta, de punhos fechados, sem tremuras no lábio.

Receámos perguntar-te mas dado que não nos dizes nada não nos surge outra coisa que não perguntar directamente o que não queríamos dizer
- pai preferias que eu tivesse dado a vida pelo teu outro filho?

segunda-feira, 9 de junho de 2014

A Responsabilidade dos Jornalistas: As Mentiras que Matam Milhões

Recordamos o livro «Os Sequestrados de Altona», de Sartre, e assalta-nos à cabeça uma imagética: o tribunal de caranguejos que julgarão, à luz do passado, a humanidade. No rodopio da imaginação, sonhamos com magistrados-crustáceos gigantes com antenas perscrutadoras da verdade, e no foco do julgamento uma trupe de gente mirrada, olhos hesitantes, rubor de bochechas. Chamados à audiência, como tantos outros que já foram e tantos outros que ainda o serão, os jornalistas. 
Sem processo kafkiano, um julgamento célere:
CULPADOS
Vós sois CULPADOS
Vós sois a vergonha.
A mentira tem perna curta.
O revisionismo histórico tem perna curta.
A deturpação, corrupção, logro, intrujice, filha da putice, tudo com perna curta. 
E somos nós que vos encurtamos as pernas. De passo em passo, vão de encontro à sentença: culpados.

Para quem desenvolveu consciência sobre o assunto, percebe que a comunicação social faz parte da máquina repressora de um Estado digno do que é: um Estado. Não há novidade. Muitos intelectuais se debruçaram sobre a matéria [1].
Éramos uns pirralhos quando a professora
stôra
senhora professora doutora
sobreexcelência chanceler eminência
vaquinha cabrinha putinha
nos dizia, da sua perspicaz erudição académica, que o «poder está na comunicação social».
Está? Sabemos que não. Como a mentira, a ideia estúpida também tem a perna curta. A comunicação social é um tentáculo, e não o polvo em si. Há outros tentáculos: justiça, segurança, instituições estatais, etc.. Perguntamo-nos: mas o Estado é o fim em si? Obviamente que não. O Estado é uma abstracção de algo que o supera. O Estado é um vassalo da intencionalidade. Sejamos directos: o Estado burguês é um instrumento do Grande Capital. Outros Estados serão instrumentos de outras intenções. Em remate, afirmamos convictamente que a comunicação social é uma vassala de uma hierarquia de vassalagem. Mas se a comunicação social é o que é, então é justo prolongar a sentença aos assalariados jornalistas? E é aqui que escorregamos na dúvida. Se por um lado compreendemos que os assalariados também são vítimas, por outro lado ficamos indignados com o papel que representam. Dentro da classe dos jornalistas, há quem se esforce para repôr a honestidade da profissão. Os outros, a maioria, continuam a abandalhar as responsabilidades. E esses trazem as mãos enxaguadas em sangue. São carrascos. Espalham a mentira. Morrem milhões e as notícias fluem nos alardes da mentira. Carrascos. 

Aos que abandalham as responsabilidades, alagados de pútrida morte, não terão julgamento com crustáceos gigantes. Não serão caranguejos a julgar a humanidade. Serão os homens, com as suas vozes humanas, com dedos humanos em riste, com consciência humana, que dirão, à trupe dos mentirosos:
CULPADOS.

[1] Recomenda-se a leitura de Manufacturing Consent de Edward S. Herman e Noam Chomsky
Imagem retirada daqui

sábado, 7 de junho de 2014

Agradecemos esta maldade avinagrada àquele que imaginamos ser o nosso único leitor. Incauta recomendação!

Será boa altura para finalmente anunciar que demos vida à nossa página no facebook. Ela não substitui de maneira nenhuma o blog, é um complemento. Aqui sim, o Da Peste à Centelha tem a sua raiz ou aparenta ter uma. É dúbio.
https://www.facebook.com/Pestecentelha
Sejam bem-vindos.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Sr. Romeulloy [conto – versão definitiva]


Tenho uma perna maior que a outra. Ou o chão é inclinado. Não sei. O tamanho da perna sei que não será exactamente igual à outra, mas será isso que me desequilibra para um lado? Talvez a ligeira vertigem lateral se deva a isso. No entanto estou de tronco inclinado para a frente, observo o chão de cima, olho os meus pés, e um estará mais abaixo e outro mais acima. O pé abaixo está mais abaixo em relação ao mais acima, o de cima está mais acima do que o que está mais abaixo. Assim parece. Excepto se for o chão que se inclina e, em vez de um desalinho, há antes um alinhar de alturas em relação a um referencial que não vislumbro. Isto de precisar de uma referência comparativa é limitador a uma análise. Em referência contra o chão escolheria um objecto recto, e contra os pés escolheria algo não recto. Talvez um pato, sem bico. Mas estará o chão torto? Terei os pés em bico? Ou será antes inclinado o referencial que nem vislumbrei ainda? Certo é que algo não está direito. E daí, não sei. Saberá alguém se é do chão, dos pés, das pernas, ou de outra existência mais? Será da coluna? Não sei se a tenho devidamente alinhada! Na minha idade, penso que não a terei. Mas estará a coluna dessa outra pessoa direita? Qualquer das causas pode ser a explicação para o desalinho vertiginoso enquanto olho o chão. Sinto. Um pé maior que o outro não desalinharia o chão. Qual seria a causa? Teria um deles podido desenvolver-se mais por desalinho do sapateiro tal como certos peixes que crescem proporcionalmente ao tamanho do aquário? É certo que não sei. E daí, talvez nem isso seja garantido. Ponho fora de possibilidade eu ter ao fundo das pernas dois peixes. Entenda-se: um ao fundo de cada perna. Não, eu não posso ter dois peixes em vez de pés, isso é certo, senão, à noite não conseguiria dormir com o cheiro. Enjoo. Virá daí a náusea que me revira o balanço? Olho o chão, olho melhor, e nada concluo. Danço! Não, estou parado. Incerto se danço ou se permaneço de pernas e tronco hirtos perfazendo um ângulo de noventa graus. Talvez sejam duzentos e setenta os graus. Não estou certo. Que terá entortado a coluna? A mochila da escola? Era pesada. Se calhar nem era. Mudava periodicamente de ombro para as torções na espinha se equilibrarem ao final do ano lectivo. Mas não estou certo de ter distribuído justamente o peso. E agora que o sinto, lembro que tenho um testículo maior que o outro. É o direito. A mochila terá sido repartida pelos ombros tendo em conta a relação entre testículos? Não, não foi. Nem me lembro se foi. E agora não sei qual dos testículos é o maior. É o esquerdo. Não sei. Confirmaria com a devida apalpação, mas desequilibrar-me-ia. Não é que eu saiba onde tenho as mãos, mas sei que me revelaria ao chão. Ao menos se rebolasse ficaria a saber que ele é inclinado. Mas, pensando bem, nada mais tomaria conhecimento quanto aos meus pés, pernas, coluna, ou, já não me lembro das outras possíveis variáveis às vertigens. Lembrei! Lembrei! Era os pés, as pernas e a coluna. Lembrei! Contudo, estou certo que ando esquecido. Qual era o ponto de partida de tudo isto? Ajudar-me-ia sabê-lo?! Recordo então que foi, salvo erro, eu não conseguir dormir com peixes nos pés. Se é que não sonhei com isto. Não sei. De erros ninguém está a salvo. Certo é que tenho um testículo maior que o outro em relação a um referencial que não vislumbro. Mas com o chão inclinado como está, nada conseguirei vislumbrar. Um pé maior que uma sapateira, acho que falei em sapateira. Ou terá sido antes em sapateiro? Com isto tudo perdi-me da minha namorada. Tenho namorada? Será aquela ali? É ela! Não sei. Se calhar preciso dela como de uma bengala. Não tenho pernas, penso. Isso explica muita coisa. Onde está a minha namorada quando preciso dela? Preciso, se ela for direita. Se for torta não será um bom referencial. Ou então não o é se for direita. É importante um referencial para o próprio referencial. Ou bastará fixar um qualquer? Acho que tenho um pé maior que o outro. E daí, não sei. Mas preciso dela, da minha namorada. Se é que tenho uma. Quero-a, mesmo que não tenha nenhuma. Preciso dela. Serei viúvo? Se calhar a viúva é ela. Mas preciso da minha enamorada. Usá-la-ei como calço.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Contemplar o Skateboarding: Centelhas da vida



Recordando o Skate.

Em mim, há todo um revivalismo. 
Intrepidez. Vertigem em tons de asneira. Puxar de um cigarro, prancha no pé e lanço de escadas a dar-lhe três quatro cinco metros, rumo à aventura. Havia sabor de juventude nos desafios à gravidade, enquanto ouvíamos e ouvíamos e ouvíamos At the Drive In, e enquanto ouvíamos e ouvíamos e ouvíamos, o cigarro mingava, o J. fazia-se à atmosfera, foguetão rumo à electricidade da queda.
Na escola, um gajo com «cabelo à foda-se», «cabelo à beto», dizia-nos encarecidamente
«skate é para podres»
Beto, surf, «cabelo à foda-se», PPM a tons de azul e branco
«skate é para pobre
Vai-te foder filho da puta.

Skate que se praticava em Lisboa era skate de becos, traseiras, betesgas mal amanhadas. Skate como arte de imaginação. Transformar o meio urbano para a prática dos saltos com prancha. 
Vizinhos, gente com cabeça raquítica, bófia
(alguém ainda usa o termo chuis?)
Havia alguém que reconhecesse o valor do skateboarding?
Não nos interessava. Desde que o J. saltasse o que tinha de saltar, desde que me espetasse onde tinha que me espetar, o mundo girava com toda naturalidade. 
Vejam o skate. Vejam com olhos de ver. Há transformação do quotidiano. Há novas formas e novos caminhos e novas visões da cidade urbana. Há toda uma imaginação condensada em pés, prancha e voo. Há coragem e estupidez. Inseparáveis. Tanta burrice em quem parte o braço e está pronto para outra tentativa. E quando um gajo tirava um «coelho da cartola»? Todo um grupo eufórico. Cada vez mais estímulos para tentar o impossível. O J. saltar um  lanço de três quatro cinco metros, aterrar sobre a prancha com ar de «no pasó nada», e todos nós aos pulos. 

Para finalizar, um pequeno apontamento. 
Consciência de classe? Só na minha cabeça. Naquele tempo, quer houvesse ou não consciência, andar de skate era uma questão de classe. Andar de skate era não recear partir os punhos e era não recear as proibições e os preconceitos. 

Um bem haja às memórias que guardo do Skate.