segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Crónica de uma Bomba de Gasolina à Noite

E se a mentira que o homem constrói não for a negação das condições do plano da existência mas antes a refracção da própria realidade, dado que a mentira transporta em si os elementos que definem a verdade, como um olhar que capta uma silhueta e especula sobre o objecto, reduzido ao intervalo das possibilidades reais, e é nestas considerações que a madrugada nos leva à bomba de gasolina, daquelas estações que permanecem abertas quando a noite tudo silenciou, e neste cenário o foco centra-se numa mulher jovem de etnia africana, gorda, pouco atraente, olhos cavados, uma cara rebentada de borbulhas, e faz-nos lembrar um ferrero rocher sem que a consciência nos impeça de tecer opiniões deselegantes, pois nesta crueza descritiva há uma validação preambular, mas voltando ao âmago narrativo, temos uma pessoa feia e gorda acabada de sair do trabalho, visto que ainda traz consigo um uniforme da empresa de limpezas, e imaginamos que terá vindo à loja a caminho de casa, uma casa que deve resumir-se a uma sala pequena com kitchenette, uma casa de banho e um quarto do tamanho de uma dispensa, e com isto se define uma casa porque assume uma exposição básica dos elementos que definem uma casa, um espaço que delimita as fronteiras do interior para o exterior, em que se encerra, mesmo quando arrendado, a ideia de propriedade, porém esta personagem não deve desenvolver a consciência para discutir estas, e outras, significações complexas, resumindo a sua relação com o espaço através de construções emocionais relativas à posse e ao status quo necessário para a sua integração social, visto que os seus vínculos sociais dependem da afirmação das condições que constroem as suas expectativas idiossincrásicas e culturais, o que por outras palavras significa que se não possuir um espaço que se possa definir como casa, pode sentir-se rejeitada por um meio envolvente que força a ideia de posse como requisito social básico, e na continuação desta ideia, vêmo-la a comprar duas revistas de moda, vários pacotes de bolachas e chocolate e um saco de pipocas, e não nos é difícil de adivinhar que quando chegar a «casa», e assim que ligar o televisor, não para seguir a programação mas simplesmente para se sentir acompanhada, abrirá as revistas onde constatará que há mulheres que são terrivelmente atraentes, afogadas em luxo e em estatuto de elite, que nada fizeram da vida com mérito próprio, à força do trabalho e do intelecto, mas tão só nasceram com genes que as favorecem nesta geração da humanidade, e esta nossa personagem afirmará nos interstícios da consciência comiserativa que a vida é injusta, e mais uma vez adivinhamos que entre lágrimas recalcará o vazio com chocolates e bolachas e pipocas, com um intuito suicida de sabotar o seu futuro, caminhando num trilho oposto ao projectado, e tudo porque a frustração e a angústia levam-na a odiar-se diariamente, seja no trabalho ou seja em «casa», recusando procurar outras ferramentas para concretizar os seus desejos e necessidades, não só por estar alienada, mas porque precisa de alimentar a mentira, e é esse o ponto nevrálgico deste discurso, dado que os sujeitos constroem mentiras não para negar a miserabilidade da vida, mas antes para se impedirem de constatar essa mesma miserabilidade e transformá-la em algo mutável, pois é mentindo-se que estorvam a mudança e a concretização das projecções pessoais, acabando por realçar e sublinhar a realidade da sua situação, e ao analisar todos os elementos que definem a mentira encontramos a silhueta da verdade, e quando a nossa personagem acordar no dia seguinte, ainda no sofá, com a televisão acesa, duas revistas que provam a insignificância da sua existência, embalagens de plástico vazios, um rosto com rímel borrado e duas novas borbulhas, bastam-lhe um saco do lixo e uma cara lavada para recomeçar um ciclo de autocomiseração que só terminará com um enfarte do miocárdio, c'est fini, kaputt, arrivederci, e tudo isto seria irrelevante se fosse um caso excepcional, mas não o é, pois a mentira continua a ser interpretada como a negação da verdade e não como a refracção da realidade, impossibilitando a tradução das angústias humanas em qualquer coisa transformável.

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