quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Praxes em Fila Indiana

Ela defendia a praxe. Argumentava. Disse-lhe que me fazia confusão ver pessoas em fila indiana, juntinhas, caminhando passo a passo para o mesmo ponto. Disse-lhe que a ordem indiana pode ser adequada e positiva quando se alinham até ao talho, para buscar umas febras e evitar confusões. Mas disse-lhe, também, que ver pessoas em fila indiana para serem talhadas me fazia mingar as vergonhas. Lembrei-lhe que há uns anos a malta fez indianas filas para entrar nuns comboios. Há um lado conformista e acrítico nas filas de miúdos com as cuecas por cima das calças que me lembra Auschwitz, e disse-lhe. Ela riu, fingiu não me levar a sério, não quis levar-me a sério (aqui foi sensata), mas ouviu-me e perdeu-se no raciocínio dela própria. Engraçou comigo! Falou que eu era um brincalhão (mas a merda é que eu falava a sério). Dava a entender que queria ser praxada e eu não estava para ali virado. Talvez o problema fosse somente o facto de preferir as morenas, mas com aquela fila de argumentos indianamente encarreirados já toda ela me era no meu imaginário um holocausto. Preparei a fuga. A sua gesticulação convidava-me para fazer fila indiana, com ela. Confesso, hesitei, tive dúvidas se deveria enfileirar-me nela, mas a História ensina muita coisa e tomei uma decisão. Fiz a escolha certa. Fiz o que devia ter feito. E agora estou arrependido de não lhe ter segurado a mão e apanhado o comboio. Afinal, ela defendia a praxe.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Centelhas que ainda Faíscam #3


Frenzy - The Ex
Let me tell you about Karl Marx
a visionary fish in a pool of sharks
he was funny guy
I don't have to tell you why
his one-liners were the best
like the one in the past
about das Casablanca manifest
For that night, a women she came
and she warn away, to warn some others
to warn her brothers
but Karl just said; "hey Fuck off
I knew you guys, up to your eyes
I know that you Fuck your mothers"
He was really quite a laugh
I just couldn't get enough
I saw all his movies, one by one
they were thought-provoking
and I'm not joking
but this son of a gun
had only just begun
to have some fun
And don't forget about this book he wrote
with plenty of "workers, you'll get fired" scenes
hello you must be going
if you know what that means
people used to laugh their heads off loud
just like in the gay old times
with them good old guillotines
And then there's Groucho, a serious bloke
who never told a single joke
he had a beard, that might seem weird
but he sure wasn't shy as he cast the die
for he told the bosses; "you bet your life"
Let's put things in hysterical perspective
to make my remarks a bit more effective
for those were the days
but those days took a hike
when the West world insist
on a sit-down strike
for the stand-up communist ...
not columnist, economist but communist
not chameleon, comedian but communist
Well, that's not arty-farty,
that's when Lenin met McCarthy
and this, as far as I can see,
was the beginning of a beautiful frenzy
The beginning of a beautiful frenzy

Dia 4 de Outubro, às 21h30, no Pavilhão do Grupo Desportivo Ferroviário do Barreiro: recuperar The Ex nos vagões da memória.  

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

"Os Zebrús estão a um nível superior"

Se alguém tiver que explicar o que é um glutão a quem nunca viu um glutão, escusado tentar fazê-lo pela negativa. Dizer que um glutão não é um cão, nem um hipopótamo, nem tem quatro rodas ou asas e nem é o padeiro que fez a dona Zenilda pecar, é, claro está, o mesmo que nada dizer sobre o que é um glutão.

A isto chama-se definir uma coisa pela negativa. Um sofisma clássico.

As coisas só podem ser definidas pela positiva. Nada se prova pela negativa. Quando se tem uma tese fundamentada pela positiva, ela pode ser refutada... surgindo uma outra tese. Além disso, há algo importante a ter-se em atenção: quando não é possível provar-se a inexistência de uma coisa, isso não significa que essa coisa exista.

Vejamos o caso do zebrú. O zebrú não é um glutão, não é um cão, não tem quatro patas nem motor. Sei, por acaso, que você não sabe o que é um zebrú nem nunca viu nenhum, mas desafio-o a provar na caixa de comentários abaixo que os zebrús não existem. Se não conseguir prová-lo os zebrús passam a existir?

Deus nos salve de tais lógicas!

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Crónica de uma Lembrança

Quando as luzes se apagam são vultos que vagueiam nas penumbras das ideias, sombras que se afastam e que se aproximam, em silêncio, nas madrugadas pesadas e longas, madrugadas insones, dado que nos assalta uma sede, uma garganta de pavores nocturnos, uma violência que se remexe nos nossos intestinos e já só nos resta ir ao frigorífico, no resgate do vinho branco, a profilaxia que os nossos instintos nos recomendam, e quando puxamos pela porta do frigorífico há aquela resistência de vácuo que nos dificulta as soluções mais fáceis, soluções que também são as mais frágeis porque nos atiram para um limbo, uma corda bamba de estados emocionais, uma dúvida que nos oprime a consciência, no entanto a porta cede e dá lugar à luz que nos estonteia os nervos, piscámos os olhos, com uma mão protegemo-nos da cegueira e com a outra buscamos a garrafa, recordamo-nos de uma infância, de uma feira, que hoje detestamos, aquele espectáculo de desordem e confusão, e gentes que se comunicam em decibéis difíceis de suportar, e é tão fácil os nossos olhos se perderem nas dezenas de barracas, e nas centenas de inutilidades que se vendem, e toda aquela sensação de sorrisos falsos e intrigas e desonestidades, toda aquela sensação de vivências marginais, tudo tão circense, da mesma forma como detestamos o circo, já não suportamos aquele modo de vida paralelo porque sabe-nos a logro e a fantasias do degredo, e vemos o nosso pai a regatear fruta num diálogo de compadres, num jeito de amizade forçada que tilinta uns cobres que se trocam por um saco de maçãs ranheta, uns sorrisos, uma gargalhada que se confunde em gargarejar, um escarro para o canto, obrigado e até amanhã, e nisto uma maçã rola da bancada e cai ao chão, e por lá se fica entre sapatos que se movem, e de pontapé para ali e outro para acolá, a maçã experimenta a turbulência do quotidiano humano até repousar num ângulo escondido entre barracas, esquecida e perdida, nem um rato que se aproximou para farejá-la fixou interesse na maçã, uma vez que foi expulsa das dinâmicas existenciais, relegada à condição do desprezo e da repulsa, uma maçã solitária em estado de decomposição acelerada, visto que foi retirada da qualidade que subjaz a matriz de existência das coisas existentes, porque fora do seu contexto cessam as razões que a mantinham no plano da sua entidade como maçã, já só lhe resta o caminho do perecimento, contaminada por um bolor de tons azuis e verdes e um arco-íris de putrilagem, nem as sementes escapam, nem a possibilidade de renascer foi-lhe dada, completamente condenada a desaparecer neste varrer de desdém que a vida nos oferece, e ao recuperarmos o presente, ainda cegos do frigorífico, desistimos da garrafa de vinho, porque já nos basta a marginalidade da noite, e é a cama que nos impele a refazer as oportunidades do amanhã, pois é o sono que nos reabilita as podridões das narrativas diárias, no entanto somos obrigados a frisar que não somos maçãs, somos homens, e mesmo quando vetados ao esquecimento, projectamo-nos nos sonhos e nas utopias, neste fluxo inesgotável de existência humana, muito para além das nossas sementes e do nosso perecimento.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Um homem vulgar

Ontem um senhor com cinquenta e muitos anos fazia conversa comigo. Dava grande importância em ser simpático para tudo e todos. As outras pessoas importam-lhe hoje mais do que antes, pareceu-me. Provavelmente um sinal de que nunca como agora ele precisa tanto dos demais. Explicitou que gostava de falar comigo! Logo eu que não gosto de fazer conversa de circunstância...

Perguntei-lhe, a certa altura, o que vinha ali fazer. Ele ia explicar, e para isso percebi que teria de puxar pelo curriculum, pela experiência, por tudo aquilo que o fazia importante para estar ali estar a fazer o que foi fazer.

- Sabe, eu...

Foi então que ele interrompeu a resposta ainda antes de a começar, olhou fixamente em frente, com ar reflexivo e

- Não! Na verdade sou um indivíduo completamente vulgar. Vulgaríssimo. Sou vulgaríssimo.

Pausa. Olhar fixo em frente e reflexivo.

- Sou um indivíduo vulgaríssimo.

Momento intenso. Olhar intenso. Tom de voz intensíssimo. Não lhe respondi. Em momentos destes penso de mais para conseguir ter espaço para conseguir falar. Lembrei Carl Sagan. As famosas passagens de Cosmos em que tudo depende da distância de perspectiva.

A Terra, a Via Láctea, é só uma partícula de pó no imenso Espaço. Tão pequenina é a nossa constelação que o planeta Terra se torna insignificante. Poeira cósmica vulgar, vulgaríssima. Porém, é praticamente tudo o que temos. Para nós, que aqui vivemos, a Terra é o planeta mais importante. [Pale Blue Dot]

Ali ia um homem vulgaríssimo.