sexta-feira, 4 de julho de 2014

Crónica de um Escritório

Escritório de mesas emparelhadas, relógio a dar o fim da transmissão, cérebros radiofónicos que labutam em frequência invariável, os colegas levantam-se em debandada, murmúrios monocórdicos
- até amanhã
murmúrios que nos assaltam aos ouvidos, pés que se arrastam, solas opacas, vestir o casaco
- até amanhã
casacos cinzentos em pessoas cinzentas
- até amanhã
gentes sem olhos boca nariz, gente coisificada, dispersa em massas indefinidas, arrastamentos de um tempo apático
- até amanhã
A nossa mesa só jarro e flor, pequena, alegre, vistosa, pequena flor, pequena planta que sorve água, bebericando, inundando-se, baptizando-se, renascendo-se em água, e um sol que acompanha a janela, movimento aparente, luz que se faz deslizar no tampo da mesa, a flor, pequena, vistosa, à luz, à sombra, duplo estado de completa existência, dado que olhamos o jarro e flor e sensação de harmonia, e quem nos vê
- até amanhã
supondo que alguém nos vê, conforme passam por nós, sem olhos boca nariz
- até amanhã
mas supondo que alguém nos vê, a nossa face rasgada em sombra, ininterrupta penumbra que nos turva a visão
(admite que turva a realidade para melhor aceitar a impotência que sente em tomar rédeas da sua vida)
uma retina ofuscada, sem brilho, toda uma negritude sem projecção para o porvir, e curvamos o olhar para o que resta do escritório de mesas emparelhadas e vazias, ecos de um relógio esgotado de sentido, e quando nos vemos sozinhos tiramos garrafa e copo da mala, e de trago em trago olhos que embaciam, e se a princípio medíamos a conta em dedos deixámos de o fazer para começar a entornar garrafas em copos cheios, e de trago em trago os olhos soluçam, e de trago em trago a garrafa vazia, de passos trocados prostramo-nos de joelhos, levantamo-nos, arrumamos copo e garrafa, o sol já era, a noite em potência, a noite que nos espera, mais garrafas, mais copos, fisgamos um último olhar ao jarro e à flor, olhar hesitante, olhos baços, olhos em cataratas ébrias, solas opacas, casaco cinzento, murmúrio gaguejado
- até amanhã

1 comentário:

Rogério G.V. Pereira disse...

Acho que enlouquecia se trabalhasse num escritório

Meu trabalho foi outro
mas... acabei louco

até amanhã