Nunca gostei de paneleirices. Gosto de ser homem. Gosto de estremecer o estuque com peidos à homem. Gosto de beber cerveja gelada e de mandar arroto. Gosto de dizer «com licença», não para desculpar o arroto. Um «com licença» que podia ser «abram alas» e o arroto em direcção à vertigem dos ecos. Gosto de andar com barba. Barba desgrenhada, desmazelada, uma garunfa de respeito. Gosto de ter pêlos na venta, e no peito, e em todos os centímetros quadrados da minha pele. Gosto, particularmente, de ter pés de chumbo para dançar. Gosto de ter pés de bailarina para o futebol. Uma miniatura de Maradona nascido com pé destro: só Diego pode ser perfeito. Gosto de gostar de futebol. Gosto de mandar caralhadas ao árbitro e à progenitora do árbitro. No final do jogo peço desculpas à progenitora do árbitro. No final do jogo mando outras tantas caralhadas ao árbitro. Gosto de tirar macacos das fossas nasais. Gosto de arredondá-los com o polegar e o indicador e fazer pontaria às coisas. Gosto de mijar em pé. Gosto, depois de uma noitada, com bexiga arredondada de cerveja, mijar às árvores, mijar aos parquímetros, mijar às caixas de multibanco. Gosto de olhar para rabos-de-saia. Gosto de suspirar depois de as contemplar. Contudo, se gosto de rabos-de-saia não é por gostar de ser homem. Haverão outros homens que não apreciam rabos-de-saia. Apreciarão outras tantas coisas e nunca deixarão de ser homens por isso. Mas ainda assim gosto de gostar de rabos-de-saia. Contemplo, distraído, sem noção da indiscrição, respeito, inocência, encolher os ombros, assobiar um quase piropo, suspirar e piscar o olho. Gosto de filmes sem história de amor. Gosto de livros sem história de amor. Gostos de narrativas violentas, secas e cínicas. Gosto de berlindes, matraquilhos e bilhar. Gosto de calduços, pontapés e socos. Gosto de andar à bulha. Gosto de tascas. Gosto de tascas com espinhas e casca de tremoço no chão. Gosto de comer alarvemente. Gosto de encher a pança e palitar os dentes com a unha. Gosto de mandar gargalhadas, e não ter que tapar a boca e contentar-me com risadinhas envergonhadas. Gosto de dizer «merda» e não ter que me preocupar com a falta de respeito. Gosto de rabos-de-saia. Gosto de repetir-me com os rabos-de-saia. Tenho gosto em escrever «rabos-de-saia». Escrevo «rabos-de-saia» e imagino-os logo. Suspiro. Gosto de dormir só de roupa interior. Gosto de acordar e coçar os testículos, a barriga, a barba e a testa. Gosto de tomar um duche só com sabão. Sem sabonetes, cremes e loções. Gosto de me ver ao espelho e espremer a borbulha. Gosto de oferecer a minha mais pura franqueza. Gosto de abraçar um amigo e de afirmar, concludentemente, que gosto dele. Gosto de mandar um gajo à merda se não gostar dele. Gosto desta simplicidade infantil no trato social. Gosto do aperto de mão. Beijinhos é para se dar à mãe e à namorada. Gosto mesmo de rabos-de-saia. Pernil longo, bronzeado, vestido de verão. Suspiro. Gosto deste modo de pensar e sentir a vida. É indescritível. É uma visão sem ornatos e efeitos. Exceptuando quando se trata de rabos-de-saia. Aí somos poetas, líricos e românticos. Rococó de contemplação. O que não gosto mesmo é a confusão que se faz entre a apreciação da masculinidade e o machismo. Gostar de ser homem não me faz ser machista. Afirmo, sem dúvidas, que ser-se machista é não gostar de ser homem. Ser-se machista é próprio das bestas. Ser-se machista é ser um filho da puta reles. Gostar de ser homem para quem é homem, e gostar de ser mulher para quem é mulher, é um salvo-conduto da humanidade. E como sou homem, sustenho o que tenho dito: gosto de ser homem. Nunca gostei de paneleirices.
quinta-feira, 24 de julho de 2014
segunda-feira, 21 de julho de 2014
Monty Python (maioritariamente)
Depois de um dia inteiro a fazer algo inútil, penoso e absurdo, a noite foi preenchida no cinema com o espectáculo dos Monty Python em directo desde Londres. Mais de três horas que souberam a pouco e que me restituíram temporariamente um bem-estar...
Porque a vida ser bem absurda
E a morte a palavra final
Você deve sempre encarar a cortina com uma saudação
Esqueça seu pecado - dê à plateia um sorriso
Desfrute-a - essa é sua última oportunidade mesmo
Monty Python, no final de O Sentido da Vida, concluem o sentido da vida em meia dúzia de palavras e mandam-nos desandar [Piss off]. Noutra cena, de outro filme, e que escolheram para terminar o espectáculo desta noite, o que alguns vêem somente uma provocação gratuita, as palavras da letra foram escolhidas com critério, demonstrando em síntese o que este post tentou transmitir.
Quero dizer - o que você tem a perder?
Você sabe, você vem do nada
Você está voltando para o nada
O que você perdeu? Nada!
quarta-feira, 16 de julho de 2014
Posicionamento Histórico Pessoal e do Homo Sapiens por Miguel Urbano Rodrigues
A humanidade realizou conquistas prodigiosas no domínio da ciência e da técnica. A vida é hoje totalmente diferente do que era na Atenas de Péricles. Mas o homem do Século XXI não é melhor nem mais inteligente do que eram - apenas dois exemplos - Platão e Aristóteles. O homo sapiens contemporâneo, com as suas virtudes, vícios e aspirações, não difere muito na sua capacidade de amar, sentir e lutar do ateniense do século V A.C., ou do cidadão de Jerusalém da época de Jesus.
O homem novo, por ora, continua a ser uma aspiração, um ser mítico, utópico. O aparecimento rapidíssimo na Rússia de Ieltsin de milhões de homens antigos, com todos os estigmas do capitalismo, requer reflexão.
A transição do capitalismo para o socialismo será muito mais lenta do que Karl Marx previu.
(...)
Sei que a minha vida útil se aproxima do fim. Mas o meu compromisso como comunista não é com o calendário e sim com os princípios e valores pelos quais me bati – o ideário que conferiu sentido à minha aventura existencial.
Vejo como ingénua a esperança de que as revoluções futuras sejam obra dos movimentos sociais. O espontaneismo não faz história profunda. A luta de classes continua a ser o motor da História. E é ao partido revolucionário marxista-leninista de novo tipo que cabe liderá-la como vanguarda.
No momento não estão criadas as condições subjetivas para revoluções socialistas no futuro imediato. Mas o capitalismo não tem soluções para salvar da destruição o seu monstruoso projeto de dominação universal. Está condenado a desaparecer. Entrou já num lento processo de implosão.
A maré da luta de classes sobe. E a convergência de muitas lutas em muitos países será fatal para o capitalismo.
in Sobre a Questão do Estado, por Miguel Urbano Rodrigues.
segunda-feira, 14 de julho de 2014
Rescaldo do Mundial de Futebol
Lá se foi o Mundial de Futebol.
Éramos crianças com cromos da panini na mão e caderneta dobrada em tubo no bolso. Sonhávamos levar, no nosso peito, o escudo nacional aos palcos do mundo. Éramos uns miúdos e o nosso desejo era orgulhar os pais, as gentes do nosso bairro, a malta do nosso povo.
Crescemos em altura e em idade, e o futebol nunca nos levou aos grandes jogos do mundial. Não faz mal, contentamo-nos com a posição de espectador. Custa-nos ver o símbolo da FIFA. Fingimos por noventa minutos que aquilo não interessa, porque só queremos regressar aos sonhos de infância e juventude. Depois do jogo continuamos a luta contra as federações corruptas que empobrecem o mundo dos povos.
Há quem goste mesmo de futebol, e nesses a apreciação faz-se pela qualidade de quem joga. Fases ofensivas, defensivas, transições. Contenção, cobertura, compensação. Jogar entrelinhas, dentro do bloco, fora do bloco, dar largura e profundidade, linhas juntas, equipa compacta, tabelinhas, corre e fixa o adversário, liberta a bola no momento certo, no sítio certo. Técnica, criatividade, conhecimento do jogo. Quem gosta mesmo de futebol desejava e ardia pela vitória da Mannschaft Alemã. Quem joga com Müller, Kroos, Götze, Lahm, Özil e Hummels só pode vencer merecidamente o maior troféu de futebol à escala mundial.
Assim que soou o apito inicial da final do mundial de futebol de 2014, veio-nos à cabeça: É a Argentina!
Caramba! É a Argentina! A alviceleste! É aquele país onde está a fantástica Buenos Aires! É a país da prata. É a Argentina das mulheres bonitas. É Argentina do tango! Versão de fado com sensualidade. Argentina do Comandante Ernesto Guevara de la Serna! É a Argentina dos desenhos de Quino. É a Argentina que entoa Carlos Gardel! Caramba! É a Argentina das Malvinas! É a Argentina dos argentinos. É a Argentina do deus Maradona. Argentina do Diego Armando Maradona. Argentina do El Pibe Maradona. É a Argentina de Pablito Aimar, Javier Saviola, Nicolás Gaitán, Ezequiel Garay e Enzo Pérez. É também a Argentina de Lucho González. É verdade. Lionel Messi. É a Argentina dos génios canhotos. A Argentina MM. Argentina Maradona e Messi.
E é assim. A cabeça diz-nos Alemanha. O coração fala-nos em Argentina, Argentina, Argentina. Mas ganhou a Alemanha. Parabéns à melhor equipa. Um grande abraço aos companheiros argentinos: para mim serão sempre os maiores. Trata-se da Argentina dos meus sonhos de criança.
domingo, 13 de julho de 2014
Charlie Haden
Demorei a compreender porque me perturbou tanto. Passei a manhã inteira a ouvir e a ler sobre ele, a ultrapassar este desaparecimento. Morreu Charles Haden!
Na noite anterior tinha lido isto, mas não me apercebi...
Há muito que era o baixista que me desafiava mais no Jazz, sem compreender se gostava ou não dele, se me tocava realmente ou apenas me fazia confusão. Seu estilo decidido e imparável, mesmo quando nas músicas mais calmas e composições de toque evidentes, havia algo que achava não bater certo... era uma tensão constante, um flutuar tenso pela harmonia sempre com o entoar decidido e imparável do baixo de Haden.
Há tempos percebi que ele era o branco que tocava nos álbuns do Ornette Coleman! Ouvia-os sem saber quem ele era, ignorando a sua importância. Frenéticos. Esses álbuns ajudam-me agora a compreender o que me fazia confusão em Haden. Vejo um bocado os baixistas de Jazz como aqueles que fazem de corda e rede em simultâneo para a banda passar, mas Haden não era rede, e se fosse corda ela estaria bamba. Se a banda quisesse sobreviver à queda teria voar ou cair com ele, e arriscavam-se a ser embrulhados numa luta de vai ou racha. Mais ou menos isso.
Só agora, que morreu, é que percebi o valor que me tem. Ainda por cima, ele tem uma das histórias mais fascinantes relativamente à história do Jazz em Portugal...
Há tempos percebi que ele era o branco que tocava nos álbuns do Ornette Coleman! Ouvia-os sem saber quem ele era, ignorando a sua importância. Frenéticos. Esses álbuns ajudam-me agora a compreender o que me fazia confusão em Haden. Vejo um bocado os baixistas de Jazz como aqueles que fazem de corda e rede em simultâneo para a banda passar, mas Haden não era rede, e se fosse corda ela estaria bamba. Se a banda quisesse sobreviver à queda teria voar ou cair com ele, e arriscavam-se a ser embrulhados numa luta de vai ou racha. Mais ou menos isso.
Só agora, que morreu, é que percebi o valor que me tem. Ainda por cima, ele tem uma das histórias mais fascinantes relativamente à história do Jazz em Portugal...
Até amanhã, camarada!
sábado, 12 de julho de 2014
Centelhas que ainda Faíscam #1
[Father:] Hey Kids!
[Kids:] Hey Dad![Father:] What'da want to do today?[Kids:] We don't know.[Father:] Wanna go to the matinee?[Kids:] NO![Father:] Wanna go to the Amusement Park?[Kids:] NO![Father:] Wanna go to the punk rock show?[Kids:] Yeah! Let's go to the punk rock show!(The Separation Of Church and Skate, NOFX)
Já conhecia, parcialmente, o trabalho do foto-jornalista Josu Trueba Leiva. O projecto que desenvolveu em 2010 é uma bonita homenagem ao movimento Punk e a Cuba.
Deixamos aqui a primeira parte do projecto, Al Son del Punk, para a contemplação dos interessados:
quinta-feira, 10 de julho de 2014
Bloco de Notas #3
"Numa época em que todos passam o pé, eu dizia a mim mesmo que ao menos aquela mulher seria sólida como a terra, sobre a qual podemos construir ou deitarmo-nos. Teria sido belo recomeçar o mundo com ela numa solidão de náufragos."(O Golpe de Misericórdia, página 88, Marguerite Yourcenar)
Um livro que se lê num só dia, e que fiz por prolongar mais um bocado num deleite de quem só quer adiar o fim. Não sendo particularmente apreciador de obras românticas, deixei-me levar, desprevenido, por esta tragédia de adolescentes que se encontravam num clima complicado, em total desespero alucinante. Contudo, o que me agarrou como leitor foi a profundidade psicológica que caracteriza os dois protagonistas principais. É uma extraordinária obra da escritora belga.
A situação que nos é descrita é anedótica e absurda. Abundante em contradições inteligentes, ao mesmo tempo que nos alicia com uma escrita carregadinha de humanidade.
A escritora, no seu prefácio, recomenda que nos devemos concentrar "(...) no valor do documento humano, e não político (...)"que o livro tem. Não me foi difícil fazê-lo. A escrita passou-me por cima do resto.
terça-feira, 8 de julho de 2014
Visão de uma Lisboa Desistida
Do Intendente sem putas ao Cais do Sodré sem putas a pé. Caminhando com passo largo, acompanhado por uma amizade honesta mas descartável, trocávamos a segurança dos passeios pelas estradas. Já foi tudo fodido. Como é bela Lisboa! Do charmoso degredo de edifícios escuros da Almirante Reis ao charmoso degredo de fachadas iluminadas da Baixa. Calçada forrada de jazigos de cartão e cheiro de futuro desistido. Preferimos o risco de sermos dilacerados por um automóvel embriagado. Descartáveis. Constatar a realidade, isto é, absorver as feições que dormem nas fachadas, não é força motriz de quem corre para o futuro, para o último eléctrico ou comboio da noite.
- É melhor correres senão perdes o comboio
Caminhando pela Baixa com passo largo, acompanhado pelos edifícios iluministas e que a burguesia em ascensão outrora mandou construir, absorvo as raízes que sobram e seguram a Cidade até ao próximo comboio. Como é bela Lisboa! Além de madeira e argamassa, o futuro era outro dos elementos de construção que a classe dominante usava. Mas deixou de usar. Haxixe? Não, obrigado.
O torniquete impediu-me de apanhar a tempo o comboio. Sou descartável. Fiquei à espera do próximo e último. Sozinho, e um segurança só que complementava a linha de torniquetes. Fundamental. Pouco se ouve da cidade. A fila de lâmpadas no tecto falso fazem um contínuo zumbido. Aragem húmida e fresca no pescoço e a vista num grupo de pernas nuas de tenra lascívia. Está tudo fodido. Agora esperam o comboio mais dois além de mim. O rapaz enrola erva. O homem enrola a cabeça entre os braços. Esperam em gestos de futuro desistido. Quererão realmente apanhar o comboio?
Pouco se ouve da cidade. Apenas gritinhos estridentes que as carnes por fecundar fazem. Chega o comboio e jorra as últimas pernas na noite. Como é bela Lisboa! Lasciva. Entra-se nas carruagens em movimentos de futuro desistido. Não sei se a Cidade nos descartou ou se nós a descartamos ao introduzirmo-nos entorpecidos no comboio.
Da janela surgem duas construções. São as próximas fachadas da sede da companhia de electricidade. Destoam em altura e em história o rio e não durarão além de meia-dúzia de décadas. Penetrando a aparência vislumbra-se que não têm raízes e não têm em conta o comboio. Aço e vidro de fachadas-marketing da aparência pela aparência. Descartáveis.
Mais jazigos de cartão ocupados. Junto, mais jazigos de alvenaria sem corpos dentro! Descartáveis. Entorpecidos com álcool enrolado dentro da cabeça enrolada entre os braços enrolados nas fachadas enroladas pelos sons e sonhos desistidos.
- Seu bilhete sffv. obrigado
A Cidade só resistirá como Lisboa quando deixarmos de evitar tomar consciência dela. E de nós, que lhe damos vida. Não fosse a cidade uma fôrma da forma como somos. Só resistirá se a tomarmos como nossa e a resgatarmos desta classe predominante que tudo torna descartável. Predominarmos nós, finalmente, que sempre fomos a raiz da Cidade. Trabalhadores! Não fosse a luz da cidade pintada com nossas mãos. Não tivesse Lisboa a forma da fôrma que lhe somos.
- É melhor correres senão perdes o comboio
Caminhando pela Baixa com passo largo, acompanhado pelos edifícios iluministas e que a burguesia em ascensão outrora mandou construir, absorvo as raízes que sobram e seguram a Cidade até ao próximo comboio. Como é bela Lisboa! Além de madeira e argamassa, o futuro era outro dos elementos de construção que a classe dominante usava. Mas deixou de usar. Haxixe? Não, obrigado.
O torniquete impediu-me de apanhar a tempo o comboio. Sou descartável. Fiquei à espera do próximo e último. Sozinho, e um segurança só que complementava a linha de torniquetes. Fundamental. Pouco se ouve da cidade. A fila de lâmpadas no tecto falso fazem um contínuo zumbido. Aragem húmida e fresca no pescoço e a vista num grupo de pernas nuas de tenra lascívia. Está tudo fodido. Agora esperam o comboio mais dois além de mim. O rapaz enrola erva. O homem enrola a cabeça entre os braços. Esperam em gestos de futuro desistido. Quererão realmente apanhar o comboio?
Pouco se ouve da cidade. Apenas gritinhos estridentes que as carnes por fecundar fazem. Chega o comboio e jorra as últimas pernas na noite. Como é bela Lisboa! Lasciva. Entra-se nas carruagens em movimentos de futuro desistido. Não sei se a Cidade nos descartou ou se nós a descartamos ao introduzirmo-nos entorpecidos no comboio.
Da janela surgem duas construções. São as próximas fachadas da sede da companhia de electricidade. Destoam em altura e em história o rio e não durarão além de meia-dúzia de décadas. Penetrando a aparência vislumbra-se que não têm raízes e não têm em conta o comboio. Aço e vidro de fachadas-marketing da aparência pela aparência. Descartáveis.
Mais jazigos de cartão ocupados. Junto, mais jazigos de alvenaria sem corpos dentro! Descartáveis. Entorpecidos com álcool enrolado dentro da cabeça enrolada entre os braços enrolados nas fachadas enroladas pelos sons e sonhos desistidos.
- Seu bilhete sffv. obrigado
A Cidade só resistirá como Lisboa quando deixarmos de evitar tomar consciência dela. E de nós, que lhe damos vida. Não fosse a cidade uma fôrma da forma como somos. Só resistirá se a tomarmos como nossa e a resgatarmos desta classe predominante que tudo torna descartável. Predominarmos nós, finalmente, que sempre fomos a raiz da Cidade. Trabalhadores! Não fosse a luz da cidade pintada com nossas mãos. Não tivesse Lisboa a forma da fôrma que lhe somos.
Local:
Lisboa, Portugal
sexta-feira, 4 de julho de 2014
Crónica de um Escritório
Escritório de mesas emparelhadas, relógio a dar o fim da transmissão, cérebros radiofónicos que labutam em frequência invariável, os colegas levantam-se em debandada, murmúrios monocórdicos
- até amanhã
murmúrios que nos assaltam aos ouvidos, pés que se arrastam, solas opacas, vestir o casaco
- até amanhã
casacos cinzentos em pessoas cinzentas
- até amanhã
gentes sem olhos boca nariz, gente coisificada, dispersa em massas indefinidas, arrastamentos de um tempo apático
- até amanhã
A nossa mesa só jarro e flor, pequena, alegre, vistosa, pequena flor, pequena planta que sorve água, bebericando, inundando-se, baptizando-se, renascendo-se em água, e um sol que acompanha a janela, movimento aparente, luz que se faz deslizar no tampo da mesa, a flor, pequena, vistosa, à luz, à sombra, duplo estado de completa existência, dado que olhamos o jarro e flor e sensação de harmonia, e quem nos vê
- até amanhã
supondo que alguém nos vê, conforme passam por nós, sem olhos boca nariz
- até amanhã
mas supondo que alguém nos vê, a nossa face rasgada em sombra, ininterrupta penumbra que nos turva a visão
(admite que turva a realidade para melhor aceitar a impotência que sente em tomar rédeas da sua vida)
uma retina ofuscada, sem brilho, toda uma negritude sem projecção para o porvir, e curvamos o olhar para o que resta do escritório de mesas emparelhadas e vazias, ecos de um relógio esgotado de sentido, e quando nos vemos sozinhos tiramos garrafa e copo da mala, e de trago em trago olhos que embaciam, e se a princípio medíamos a conta em dedos deixámos de o fazer para começar a entornar garrafas em copos cheios, e de trago em trago os olhos soluçam, e de trago em trago a garrafa vazia, de passos trocados prostramo-nos de joelhos, levantamo-nos, arrumamos copo e garrafa, o sol já era, a noite em potência, a noite que nos espera, mais garrafas, mais copos, fisgamos um último olhar ao jarro e à flor, olhar hesitante, olhos baços, olhos em cataratas ébrias, solas opacas, casaco cinzento, murmúrio gaguejado
- até amanhã
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