sábado, 31 de maio de 2014

Breve Comentário sobre As Vinhas da Ira

“Inquietavam-se as terras do Oeste sob os efeitos da metamorfose incipiente.
Os Estados ocidentais sentiam-se inquietos como os cavalos antes da trovoada. Os grandes proprietários inquietavam-se, pressentindo a metamorfose, sem atinarem, no entanto, com a sua natureza. Os grandes proprietários atacavam o que lhes ficava mais próximo: o governo de poder crescente, a unidade trabalhista cada vez mais firme; atacavam os novos impostos e os novos planos, ignorando que todas essas coisas são efeitos e não causas. As causas escondiam-se bem no fundo e eram simples – as causas eram a fome, a barriga vazia, multiplicada milhões de vezes, fome na alma, fome de um pouco de prazer e de um pouco de tranquilidade, multiplicada milhões de vezes; músculos e cérebros que ansiavam por crescer, trabalhar, criar, multiplicados milhões de vezes. A última função clara e definida do homem – músculos que querem trabalhar, cérebros que querem criar algo além da mera necessidade – isto é o homem. Construir um muro, construir uma casa, um dique, e pôr nesse muro, nessa casa, nesse dique algo do próprio homem, é retirar para o homem algo desse muro, dessa casa, desse dique. Obter músculos fortes à força de movê-los, obter linhas e formas elegantes pela concepção. Porque o homem, ao contrário de qualquer coisa orgânica ou inorgânica do universo, cresce para além do seu trabalho, galga os degraus das suas próprias ideias, emerge acima das próprias realizações. É isto o que se pode dizer a respeito do homem.
Quando as teorias mudam e caem por terra, quando as escolas filosóficas, quando os caminhos estreitos e obscuros das concepções nacionais, religiosas, económicas, se alargam e se desintegram, o homem arrasta-se para diante, sempre para frente, muitas vezes cheio de dores, muitas vezes pelo caminho errado. Tendo dado um passo à frente, pode voltar atrás, mas apenas meio passo, nunca o passo todo que já deu. Isto se pode dizer do homem, dizer-se e saber-se." (As Vinhas da Ira, John Steinbeck, página 154-155)
Todo um livro que, a curto e grosso modo, expõe uma análise concreta e genuína a um período determinado da vida do povo norte-americano. Contudo, e é de realçar este facto, toda esta análise é transversal ao período que abrange a luta de classes. Surpreendeu-me? Sem dúvida! O filme é magnífico, a escrita é inqualificável. Faço uma citação de um fragmento do livro, mas podia (ou devia) fazê-lo na integra. Todo o livro tem um exame muito profundo às contradições da sociedade da época. Steinbeck escreveu este livro, não como um relatório, nem como uma dissertação, mas como um romance. Inqualificável. 

Imagem retirada daqui

terça-feira, 27 de maio de 2014

Sinfonia de Chuviscos em Parapeito de Primavera


É como se na alegria chovesse tristeza, e é desta forma que contemplamos o parapeito da janela em manhã de chuva, de gotícula em gotícula uma valsa de moléculas aos pulos, uma sinfonia de gotejamento oferecida aos vãos enquanto fazemos a barba cantarolando tchaikovsky, convencendo-nos que cantando, assobiando, trauteando, expurgamos a infelicidade projectando esperança que o dia de hoje tem tudo para correr bem, e distraídos, com mãos desarranjadas, um golpe no pescoço
(e estaria mesmo distraído)
gotícula em gotícula sujar o lavatório de sangue, primeiro uma coisa fina e depois, progressivamente, uma coisa volumada, densa, a caminho de um rio, todo um lavatório a transbordar e um chão com tonalidades avermelhadas e são os nossos pés que se afogam no nosso sangue, como quando dormimos e sonhamos com mundos fantasiosos, uma alegria de existência, um hino ao prazer, e se alguém se debruçar sobre nós constata um ligeiro sorriso de quem está feliz, mas como em qualquer história bem contada há uma variação brusca, um revezar de condições, um salto, um tropeçar, um cadafalso, invadem-nos as ausências e experimentamos o terror dos pesadelos esquecidos, acordamos em sobressalto, ofegantes, transpirados, as pupilas em explosão, e o que dizer das nossas mãos, apertadas, punhos cerrados, compressão total, com pressão total, a cabeça a mil à hora e a cabeça a mil à nora, deslocados da razão num desespero enorme, e se voltamos à almofada enrolamo-nos como crianças em convulsão
fecha os olhos e não sonhes não sonhes é só fechar os olhos e não sonhar e por favor não sonhes é só mesmo fechar os olhos e o tempo correr sem sonhar e depois acordar como se nada tivesse acontecido
(amedrontar-se com pesadelos e depois não quer sonhar e não se admire quando afirma que não se consegue ver no futuro)
enrolamo-nos mais e mais, conforme em criança quando jogávamos à bola e se nos pregavam uma rasteira, sem nos tocar, mergulhávamos no chão, enrolados, agarrados ao joelho direito e depois agarrados ao joelho esquerdo, e com tanto teatro esquecemos o joelho, enrolamo-nos cada vez mais e é como se aquela rasteira inexistente fosse a materialização da violência dos dias comuns, e quando os colegas de equipa e os adversários nos rodeiam, enquanto estes acham que é tudo fingimento e aqueles acham que foi uma entrada assassina, fica só um agrupamento de olhos que nos perscrutem, tal como nos sonhos as ausências surgem e nos perscrutem, ensombrando as fantasias num terror de pesadelo, e tudo se resume a íris e pupilas e silêncio, dado que tentamos expulsar palavras da boca e nada conseguimos, uma vez que temos uma pedra, não na bexiga mas nas cordas vocais
(não terá uma pedra na cabeça)
e naquele esforço último conseguimos sonorizar qualquer coisa que não palavras, qualquer coisa como um guincho naquele sábado de manhã, já o vizinho pendurava o porco de pernas para o ar, e tudo o que havia no ar era uma atmosfera difusa, dado que nos assaltava ao espírito uma empatia com o animal, e desconsiderando afeições com suínos o vizinho amolava a faca de corte, e da memória já só nos resta o golpe, os guinchos de que nos arreliam os pêlos da nuca e o gotejar vermelho na terra com papel higiénico a estancar o sangue que jorrava do pescoço, uma lâmina de barbear com tons escarlate, e de pingo em pingo uma valsa no parapeito da janela, enquanto chove torrencialmente numa manhã de primavera, e percebemos que há inutilidade na esperança, a meio caminho de aceitarmos a inevitabilidade do absurdo, porque é como se na alegria chovesse tristeza.

Imagem retirada daqui

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Euro e União Europeia - Pandemia Bubónica

No próximo domingo há eleições para o parlamento europeu. O enredo é difuso. É assim a realidade, cheia de contradições. Acontecimento enredado por ideias e imagens épicas e fabulosas que é na verdade outra coisa. Falam em «Europa» quando é apenas «União Europeia»: a Europa existia antes da UE e continuará a existir depois desta. Falam em «eleições europeias» quando são apenas para o «Parlamento Europeu» [link]. As eleições ajudam a dar uma aparência de democracia, mas a aparência não coincide com a realidade concreta. O Parlamento Europeu tem poderes muito limitados. Aqueles que mandam na UE não são eleitos. O épico não é fabuloso, é angustiante. A ilusão e ignorância perante estes assuntos permite-nos poupar nos ansiolíticos e apreciar a grandiosidade sinfónica do Hino da Alegria. Não o tenho ouvido ultimamente!

É épico, é sim. É enorme, o «monstro europeu». Sensação de esmagamento. Somos demasiado pequenos. Insignificantes. Que fazer? Tamanho monstro só pode ser combatido com um movimento de massas - maldita consciência! Individualmente, temos uma infinitésima importância na mudança. Votar é importante, mas é infinitésimalmente útil. É-o mesmo escolhendo colocar a cruz no Partido da classe operária - a classe progressista - e já em si um grande movimento de massas. O enredo é contraditório. É útil e inútil. É crucial e ao mesmo tempo infinitesimal, isto é, aproximadamente igual a inútil.

Em A Peste, de Albert Camus, a desesperança tomou contra da cidade de Oran, uma tragédia de contornos difusos e inicialmente ignorados pela maioria população era na realidade bastante concreta, era a Peste. Os habitantes morriam pelo meio das ruas ou agonizavam em suas casas. Ela parecia imparável. No entanto, apesar da ausência de esperança, houve quem tivesse organizado equipas de saneamento, tratado os doentes, dado a vida por muitos que se limitavam a olhar, ignorando a sua própria utilidade infinitesimal, cobardes perante o épico desenvolvimento da tragédia.

Fascina-me este estranho fenómeno. Mesmo quando está claramente tudo perdido, e a tragédia é imbatível, há alguém que num insensato altruísmo se maça para fazer algo de útil. Infinitesimalmente útil. E, por fim, demonstram na prática que a tragédia só era inevitável na aparência, na voz e pensamento da maioria das pessoas. Foi o que fizeram os povos da União Soviética enfrentando o maior exército da História. Foi o que fizeram os comunistas e outros democratas na década de 60 em Portugal: quantos acreditariam que poucos anos depois o regime fascista cairia perante uma revolução democrática e nacional rumando, embora temporariamente, para o socialismo?

Quantos de nós acreditam ser possível que as amarras do Euro e da União Europeia possam estar prestes a cair? No entanto, há quem incorpore já equipas de saneamento. Tal como o exército nazi e o regime fascista português, foi uma estranha soma de acções individuais infinitésimais (mas organizadas) que remeteram na cidade de Oran a Peste para o passado.

Mas nem sempre as histórias acabam bem.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Uma Cabeça em Carrossel com Sabor a Vinho

E se os corredores nos devorarem o apelo à vida, enquanto serpenteiam, entrecruzando-se labirinticamente, conforme as noites que se deitam sobre nós numa mancha oca, dado que as sombras não pesam mas manifestam-se, como quando desenrolamos a cabeça em ideias, ou espectros de ideias, e olhamos a rua pelos rectângulos dos estores, e se escrevemos olhamos é abuso, posto que os olhos enevoados, envoltos numa cegueira de quem está distraído
(distrai-se pela periferia sem atacar o problema de frente)
e puxamos cigarro após cigarro, copo após copo, lembrança após lembrança, e cansados dos rectângulos dos estores, mais ébrios do que era expectável, avançamos com os pés desorientados e com as mãos encostadas à parede rumo à cama com lençóis revoltados, juramos que não nos caem lágrimas
(recusa assumir que o seu corpo lhe dá sinais porque quer recusar a resposta óbvia às suas dúvidas da mesma forma que escreve e escreve e escreve e depois perde-se irremediavelmente em disparates e em alegorias insípidas e inúteis e já reparou que nunca responde como se o contraditório fosse ruído de fundo)
e juramos que as lágrimas são não lágrimas, da mesma forma que os pés não estão trocados, visto que foram alguns copos que se entornaram no nosso estômago, conforme andamos com pernas hesitantes sem fugir ao encosto da parede e na vertigem da cama deixamo-nos cair de costas, e dá-nos vontade de perguntar que carrossel é este uma vez que a cama gira sem parar, e não conseguimos assentar o olhar nem as ideias, contudo nada disso nos importa, há pouco estivemos envoltos numa cegueira de quem está distraído, agora estamos envoltos numa confusão de quem se sente absurdo, e puxamos cigarro após cigarro, copo após copo, enquanto a cama se revolta em rodopios e nós nos agarramos aos lençóis com medo de sairmos lançados pela janela fora, e num esforço enérgico endireitamo-nos, sentados, na esquina da cama, de cotovelos nas pernas e com as mãos que seguram uma cabeça que rola em todos os sentidos, mas que puta de carrossel é este
(é o carrossel que faz da vida e como não consegue parar fica impossível de ver as coisas como elas são)
e há este zumbir distante que se faz notar cada vez mais, dado que o telemóvel está a dar sinais de vida, e se sondamos o bolso esquerdo das calças é engano, e a nossa experiência do absurdo é isto, falhamos sempre à primeira e quando vamos ao segundo já o fazemos em desespero, e do telemóvel um balbuciar de palavras desconexas e uma sensação do que há confirmação do que se estava à espera
(tudo o que faz é confirmar passivamente o que estava à espera sem perceber que estava à espera das confirmações que lá no fundo sempre desejou)
e amanhã já sabemos que o hospital nos espera, e vagueando de pernas trocadas, camisa desapertada e braguilha aberta, confirmaremos em papel e assinatura um óbito e um início de processo, e de pé para pé, solas escorregadias em permanente carrossel, iremos serpentear, entrecruzando labirinticamente, os corredores que nos devoram o apelo à vida.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Amam Deus e os filhos e o próximo

por Felix Nussbaum (link)
Dizem que amam Deus, os filhos e o próximo. 

Ironia! São indiferentes aos desempregados, aos massacres e ao ascenso do nazi-fascismo (link), às bombas dos drones e ao urânio empobrecido que longe matam. São indiferentes a isso e não só. No facebook e outras redes sociais, blogs inclusivé, há quem dê os alertas e às vezes quase gritam por socorro.

Mas a indiferença supera. Dizem que amam Deus, os filhos e o próximo, no entanto abdicam de os ajudar quando abdicam de tomar conhecimento sobre o mundo e agir. Sobretudo se a acção for além dos seus umbigos, for com e para os outros, isto é, se a acção for política, de massas. A ignorância ganha em culto a tudo excepto a Deus. Pleonasmo! Deus torna-se o único reduto para que sejam poupados os filhos e o próximo.

Amor a Deus, aos filhos e ao próximo, que tantos dizem ter, é contradito pela frivolidade como amam e como ignoram as transformações da sociedade. Confesso que me estou a cagar para os meus filhos e para Deus. Antes cagar assim do que amar de frívola e indiferente forma. E assim faço mais em prol de todos do que estes amantes empestados pela indiferença. Peste!

Vamos todos morrer. Apesar disso, insistimos.

terça-feira, 13 de maio de 2014

História dos Homens Comuns em Fluxo

Quando o verão emerge violento, ficamos cegos e desvairados enquanto apalpamos o calcário do chão, como quando calcorreamos as casas da noite, a jeito para que sejamos confundidos por um james dean prostibulário
(james dean prostibulário é um alter ego seu?)
e se dermos ao olfacto a sua oportunidade, exalamos a testa húmida, a cigarro mole, a vontade de mijar às portas, e do nevoeiro com sabor a nicotina e a cerveja morta manifestava-se o chilro saxofonista dos pássaros, cegos e desvairados, acelerados pela comoção, um sapato cadenciado, meter os pés nas algibeiras
(está sempre a meter os pés pelas mãos)
- dá-lhe charlie dá-lhe
vapores tertulianos que emanam da nossa cabeça, enquanto o sol enrijece as crostas cutâneas de quem vagueia nos labirintos de calçada, magote de gentes frouxa com solas lânguidas, arrasto de movimento em aguarela borrada, e à nossa frente um copo de amêndoa amarga que bamboleia ao ritmo do tamborilar dos nossos dedos no tampo da mesa
- dá-lhe charlie dá-lhe
e não cabemos de êxtase quando o ruído orgásmico subleva a rigidez melódica, e com a boca
- pam pam pam pam
e com as palmas
- dá-lhe charlie dá-lhe
e uma voz que foge da penumbra
- porra charlie és o maior
São dias em que tudo se pega ao corpo, e com a cabeça mergulhamos as ideias em blocos de gelo
(acha que a cabeça lhe ferve e depois sente que precisa de arrefecer quando nem começou a aquecer)
enlouquecem-nos a lubricidade das carnes expostas, despeitoradas aquosas que revelam arcos e dobras e sonhos, e uma gota de suor que desliza na vertigem do peito feminino, e quando queremos dissuadir os olhos o nosso corpo um não corpo mas sim um autómato, não responde à razão da mesma forma que os pés, os dedos, a cabeça baqueteiam a cadência musical soprada pelo tumulto dissonante 
- dá-lhe charlie dá-lhe
autómato broto da égide solar de olhos concentrados na incandescência das peles bronzeadas, sabor a lascívia salgada na confusão dos lençóis, garrafas de vinho na balbúrdia do quarto
- pam pam pam pam
(desvaloriza o sexo porque não acredita na troca qualitativa entre seres humanos)
e corpos que se misturam em combustão como o verão emerge violento, e a camisa colada ao corpo porque derretemo-nos neste abuso de sobrevivência
- pam pam pam pam
mas quando acordamos, ao nosso lado costas despidas que não conhecemos, e parece que nos vai cair a cabeça, um turbilhão de recordações entrecortadas que não se cosem num sentido cronológico de eventos, e nos recantos absurdos do crânio
- pam pam pam pam
(essas suas dores de cabeça são consequência das horas que não dorme)
surge-nos uma vaga ideia
- dá-lhe charlie dá-lhe
até voltarmos ao labirinto de calcário, sob um sol pungente e insensível, rumo ao contra-senso das responsabilidades diurnos, mas sem nunca evitar um james dean prostibulário que renasce das cálidas noites, autómato alimentado a pássaros saxofonistas e a seios húmidos, um devasso de costas despidas e de copos gingões, um exemplar da história dos homens comuns em fluxo.

[1] sonorização musical como fonte para escrita aqui
Imagem retirada daqui

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Dar Pardais às Raízes do Sobreiro

E se a memória fosse gomos que se mastigam, umas mais doces outras mais ácidas, um caroço pelo meio, muitos caroços pelo meio, afinal todo ele um caroço
(parece que em vez de cabeça tem um caroço e depois não consegue elaborar um raciocínio do princípio ao fim)
dado que mastigamos a memória e esta não digere, faz-se uma papa insonsa de cronologia duvidosa e depois já nem sabemos se havemos de engolir ou cuspir fora, ficamos com a papa na boca à espera de uma decisão, ou à espera que nos engasguemos 
(sempre passivo sem perceber que já se engasgou há imenso tempo)
como quando ficamos a ver o alentejo como quem fica a ver uma novela, dado que há romance entre a aridez da terra e o sol dos desertos, são narrativas de amor difícil que se alimentam de avanços e retrocessos e no fim já sabemos que estarão inevitavelmente juntos, e se bocejamos de enfado, porque a história é sempre a mesma, encostamo-nos ao sobreiro e lemos agatha christie, que a história, apesar de sempre a mesma, vai-nos ocupando a melancolia, e é nestas distracções que nos desviamos do aborrecimento e nos debruçamos numa cria de pardal, desamparada e estúpida, que no impulso de sobrevivência enche o peito de ar para expirar um berreiro de respeito
(ao contrário de si que em vez de expirar anda a inspirar berreiros de socorro)
e dado que a mãe pardal anda distraída nos seus afazeres, e assumindo que o pai pardal é um apoucado mental, resta que nós, os debruçados, elevemos o constrangimento de adolescente ao altruísmo de quem assume a responsabilidade das suas acções, e analisando o contexto onde se encontra a cria de pardal que, caída de um qualquer ramo de sobreiro, está inteiramente dependente da boa vontade alheia, e dado que nos pareceu faminta, achámos que seria nosso dever dar provimento alimentício à base de côdea de pão, porém, e admitindo que ficámos surpreendidos, a cria de pardal engasgou-se, e é nossa obrigação assumir que a surpresa foi relativa visto que dar côdea a pardalitos foi como condená-la a uma medonha morte por engasgamento
(já só faltava recriar-se como um assassino consciente)
e em desespero, com uma cria de pardal nas mãos, numa agoniante morte por sufocamento, apertamo-la na palma da mão até os pequenos olhos incharem, e apertando mais um bocado já não tínhamos uma cria de pardal morta por se ter engasgado, tínhamos uma cria de pardal esmagada por compaixão suspeitosa, e para finalizar toda esta obra de benevolência, enterrá-mo-la junto ao sobreiro, porém devemos declarar que o enterro não se fez com intuitos cristãos, ou nada que se lhe pareça, pois fizemo-lo porque a vergonha nos assaltou o espírito e enterrando os indícios do crime seria o melhor caminho para cobrir a culpa, contudo a memória é como os gomos que se mastigam, demasiado caroço em papa insonsa, e já nem sabemos se havemos de engolir ou de cuspir, mastigamos e mastigamos até que a cria de pardal nos engasgue a consciência.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Sr. João [conto?]

O senhor João ultrapassou-me a passo rápido quando me falou. Olá Bruno, vou apanhar o comboio senão chego demasiado tarde. Nunca o vira a andar tão depressa. Nem quando o via quase diariamente a encaminhar-se até às putas do Cais Sodré que por uns tempos lhe foderam as poupanças de uma vida. O comboio quase a chegar. A sua respiração estava ofegante mas não era do ritmo da passada.

... A minha mulher desta vez não se safa!

Travou o passo. O sr. João nunca antes fizera conversa comigo tão prolongadamente. A sua necessidade de falar com alguém era tão grande que se arriscou a perder o último comboio até ao último folgo de sua mulher. A minha passada é larga e rápida, mas senti que não era suficiente. Ele seguia a pouco mais de meio metro de mim. Para trás olhava-me enquanto falava. Pedia por reciprocidade no meu olhar. O comboio já deveria ter passado e nós ainda longe. Acelerei, temendo que fosse em demasia, que a velocidade desarticulasse a curta passada do sr. João até ao chão, e que ainda fosse vê-lo a levantar-se em lágrimas por uma mulher que há muitos anos se saturara e lhe era insuportável.

... Ela ontem sentiu-se mal. As visitas são agora até às 13h00.

Nunca vi o sr. João caminhando lado a lado com a mulher. Fugia à frente dela. Distância de muitos metros. Sempre. Mas nunca numa passada tão rápida como a desta passada que vos conto. Era uma passada sôfrega, não pelo ritmo, mas pela emoção de uma última vez. Atenção sr. João que acho que o comboio já deveria ter chegado. Mas ele continuou a pouco mais de meio metro de mim. Ao meu ritmo. Meio a fugir. Meio a ficar. Distância bem mais tolerante que a que tinha à sua mulher.

... A minha mulher desta vez não se safa!

Felizmente que os comboios na Linha de Cascais avariam com frequência e uns tantos chegam atrasados. O sr. João chegou a tempo. Despedi-me sem lhe dar esperanças. Eu sabia que ela desta vez ia morrer.

Dias depois cruzo-me com o sr. João em ritmo que lhe é o normal. Falou-me sem travar o passo. Cumprimentou-me, apenas isso. Metros mais à frente surge-me a mulher do sr. João. Fiquei admirado. Perguntou-me coisas. Ela sempre perguntava coisas. Muito coscuvilheira. Por isso toda a vida fugi dela. Desta vez respondi. A um morto nada se recusa.

A idade deles é incerta. O desgaste que a fábrica lhes causara não me permite determina-la. Já não sou do tempo em que havia indústria junto à Linha de Cascais. Ou se calhar fui. O sr. João e a mulher só se reformaram anos depois de ela ter partido a perna no trabalho. Lembro-me disso. Talvez tenham recebido uma indemnização aquando do fecho da fábrica. Se calhar foi esse o dinheiro das poupanças que o sr. João fodeu nos braços do Cais Sodré.

Morreu ontem à tarde depois do almoço. Matou-se ao ir zonza com a cabeça a uma esquina por causa da quimioterapia. Os músculos contorceram-lhe o corpo. O sr. João agarrou-a e abraçou-a. Telefonou para o filho. Para a filha. Mas o dia que parecia igual a qualquer outro foi mais rápido que ambos e quando chegaram a mãe passara a ser uma carcaça fria. O sr. João, desesperado. A mulher pela primeira vez fugiu-lhe à frente. E não perguntou nada.

O velório foi hoje. O sr. João, desesperado. Em breve haverá outro. Desta vez é ele que não se safa. Pela primeira vez a sua mulher lhe fugiu à frente. E ele acelerou o passo. Os filhos ainda não perceberam. Vão voltar a chegar tarde. Mãe e Pai. Carcaças. Já só há tarde demais. Os corpos dos pais há muito que já estão frios.

domingo, 4 de maio de 2014

Decreto Exposto em Diário da Existência

Quando sentimos que estamos expulsos do tempo, é como escrever que nos sentimos desenquadrados de tudo o que nos rodeia
(porque se sente desenquadrado de si mesmo)
da mesma forma que olhamos para nós e sentimos que estamos do lado de fora, sem perceber se pertencemos ao passado ou ao futuro, mas garantidamente falaste-me em língua estrangeira e eu anuí para não me dar ao trabalho de te ouvir outra vez mas garantidamente que não pertencemos ao tempo de hoje, dito de outra forma, é como quando estivemos nas celebrações do carmo com aquele arrozal de gentes e sentimos as nossas ideias a ensoparem-se no desespero, e depois em surdina
- o que é que estamos aqui a fazer
fugimos à procura de cerveja barata, numa vã tentativa de nos recuperarmos, qual máquina do tempo, para convergir num tempo que nos devolva a vontade de comemorar datas, ou momentos, e quando escrevemos comemorar queremos dizer rememorar datas, ou momentos, mas é uma vã tentativa de é impossível voltar a entender quem declaradamente me abandonou e desculpar-te seria assumir a irrecuperabilidade da minha culpa e tu dizes-me mas eu não sabia da doença e eu respondo não sabias porque quiseste olhar para o lado como quem desvia os pés da merda de cão que está no chão
(sente-se como merda de cão e depois não foge dessa depreciação que faz de si mesmo não admira que ache impossível que os outros o possam valorizar)
mas é uma vã tentativa de nos recuperarmos porque aquela multidão pequena-burguesa - ou grande-burgessa - sufoca-nos aquela réstia de esperança
(qual esperança quando se acredita no absurdismo)
e se estivemos no carmo foi engano, como um álbum de fotografias é engano e quando nos agarramos à nostalgia é porque deixámos de esperar pelo futuro, e nem com toda aquela cerveja podíamos afogar este frenesim de cinismo que se agarra a nós como carraças sanguessugas vampiros chupadores de honestidade dizes-me mas as coisas já não estavam bem entre nós mas todo este cinismo é uma manobra de sobrevivência conforme nós assumimos que estamos perdidos nesta coisa confusa a que chamam vida, e à noite olhamos ao espelho e perguntamos
- o que é que estamos aqui a fazer
se somos homens do passado ou do futuro, porque do presente não somos, porque sentimos este desenquadramento, e não se trata de acomodação ou preguiça ou, no limite, um desajustamento social por incapacidade psicológica nossa
(diz que não mas às vezes parece que diz que sim)
e recordamo-nos que fomos convidados a tocar música num estúdio e em cinco minutos de experiência puxámos do cigarro
- o que é que estamos aqui a fazer
e fomos embora, dado que falamos línguas diferentes, só pode, visto que falam baboseira e nós juramos que não percebemos respondo-te que quem tanto aceitou tem sempre a opção de dizer que não obrigado visto que quem dá expõe-se e que quem recebe escolhe e o melhor é ficarmos por aqui dado que teria de explicar o enraizar da filosofia do consumo da mesma forma que juramos que não percebemos as comemorações no carmo, porque soubemos, por decreto exposto em diário da existência, que fomos expulsos do tempo.