E se os corredores nos devorarem o apelo à vida, enquanto serpenteiam, entrecruzando-se labirinticamente, conforme as noites que se deitam sobre nós numa mancha oca, dado que as sombras não pesam mas manifestam-se, como quando desenrolamos a cabeça em ideias, ou espectros de ideias, e olhamos a rua pelos rectângulos dos estores, e se escrevemos olhamos é abuso, posto que os olhos enevoados, envoltos numa cegueira de quem está distraído
(distrai-se pela periferia sem atacar o problema de frente)
e puxamos cigarro após cigarro, copo após copo, lembrança após lembrança, e cansados dos rectângulos dos estores, mais ébrios do que era expectável, avançamos com os pés desorientados e com as mãos encostadas à parede rumo à cama com lençóis revoltados, juramos que não nos caem lágrimas
(recusa assumir que o seu corpo lhe dá sinais porque quer recusar a resposta óbvia às suas dúvidas da mesma forma que escreve e escreve e escreve e depois perde-se irremediavelmente em disparates e em alegorias insípidas e inúteis e já reparou que nunca responde como se o contraditório fosse ruído de fundo)
e juramos que as lágrimas são não lágrimas, da mesma forma que os pés não estão trocados, visto que foram alguns copos que se entornaram no nosso estômago, conforme andamos com pernas hesitantes sem fugir ao encosto da parede e na vertigem da cama deixamo-nos cair de costas, e dá-nos vontade de perguntar que carrossel é este uma vez que a cama gira sem parar, e não conseguimos assentar o olhar nem as ideias, contudo nada disso nos importa, há pouco estivemos envoltos numa cegueira de quem está distraído, agora estamos envoltos numa confusão de quem se sente absurdo, e puxamos cigarro após cigarro, copo após copo, enquanto a cama se revolta em rodopios e nós nos agarramos aos lençóis com medo de sairmos lançados pela janela fora, e num esforço enérgico endireitamo-nos, sentados, na esquina da cama, de cotovelos nas pernas e com as mãos que seguram uma cabeça que rola em todos os sentidos, mas que puta de carrossel é este
(é o carrossel que faz da vida e como não consegue parar fica impossível de ver as coisas como elas são)
e há este zumbir distante que se faz notar cada vez mais, dado que o telemóvel está a dar sinais de vida, e se sondamos o bolso esquerdo das calças é engano, e a nossa experiência do absurdo é isto, falhamos sempre à primeira e quando vamos ao segundo já o fazemos em desespero, e do telemóvel um balbuciar de palavras desconexas e uma sensação do que há confirmação do que se estava à espera
(tudo o que faz é confirmar passivamente o que estava à espera sem perceber que estava à espera das confirmações que lá no fundo sempre desejou)
e amanhã já sabemos que o hospital nos espera, e vagueando de pernas trocadas, camisa desapertada e braguilha aberta, confirmaremos em papel e assinatura um óbito e um início de processo, e de pé para pé, solas escorregadias em permanente carrossel, iremos serpentear, entrecruzando labirinticamente, os corredores que nos devoram o apelo à vida.
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