E se a memória fosse gomos que se mastigam, umas mais doces outras mais ácidas, um caroço pelo meio, muitos caroços pelo meio, afinal todo ele um caroço
(parece que em vez de cabeça tem um caroço e depois não consegue elaborar um raciocínio do princípio ao fim)
dado que mastigamos a memória e esta não digere, faz-se uma papa insonsa de cronologia duvidosa e depois já nem sabemos se havemos de engolir ou cuspir fora, ficamos com a papa na boca à espera de uma decisão, ou à espera que nos engasguemos
(sempre passivo sem perceber que já se engasgou há imenso tempo)
como quando ficamos a ver o alentejo como quem fica a ver uma novela, dado que há romance entre a aridez da terra e o sol dos desertos, são narrativas de amor difícil que se alimentam de avanços e retrocessos e no fim já sabemos que estarão inevitavelmente juntos, e se bocejamos de enfado, porque a história é sempre a mesma, encostamo-nos ao sobreiro e lemos agatha christie, que a história, apesar de sempre a mesma, vai-nos ocupando a melancolia, e é nestas distracções que nos desviamos do aborrecimento e nos debruçamos numa cria de pardal, desamparada e estúpida, que no impulso de sobrevivência enche o peito de ar para expirar um berreiro de respeito
(ao contrário de si que em vez de expirar anda a inspirar berreiros de socorro)
e dado que a mãe pardal anda distraída nos seus afazeres, e assumindo que o pai pardal é um apoucado mental, resta que nós, os debruçados, elevemos o constrangimento de adolescente ao altruísmo de quem assume a responsabilidade das suas acções, e analisando o contexto onde se encontra a cria de pardal que, caída de um qualquer ramo de sobreiro, está inteiramente dependente da boa vontade alheia, e dado que nos pareceu faminta, achámos que seria nosso dever dar provimento alimentício à base de côdea de pão, porém, e admitindo que ficámos surpreendidos, a cria de pardal engasgou-se, e é nossa obrigação assumir que a surpresa foi relativa visto que dar côdea a pardalitos foi como condená-la a uma medonha morte por engasgamento
(já só faltava recriar-se como um assassino consciente)
e em desespero, com uma cria de pardal nas mãos, numa agoniante morte por sufocamento, apertamo-la na palma da mão até os pequenos olhos incharem, e apertando mais um bocado já não tínhamos uma cria de pardal morta por se ter engasgado, tínhamos uma cria de pardal esmagada por compaixão suspeitosa, e para finalizar toda esta obra de benevolência, enterrá-mo-la junto ao sobreiro, porém devemos declarar que o enterro não se fez com intuitos cristãos, ou nada que se lhe pareça, pois fizemo-lo porque a vergonha nos assaltou o espírito e enterrando os indícios do crime seria o melhor caminho para cobrir a culpa, contudo a memória é como os gomos que se mastigam, demasiado caroço em papa insonsa, e já nem sabemos se havemos de engolir ou de cuspir, mastigamos e mastigamos até que a cria de pardal nos engasgue a consciência.
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