Quando sentimos que estamos expulsos do tempo, é como escrever que nos sentimos desenquadrados de tudo o que nos rodeia
(porque se sente desenquadrado de si mesmo)
da mesma forma que olhamos para nós e sentimos que estamos do lado de fora, sem perceber se pertencemos ao passado ou ao futuro, mas garantidamente falaste-me em língua estrangeira e eu anuí para não me dar ao trabalho de te ouvir outra vez mas garantidamente que não pertencemos ao tempo de hoje, dito de outra forma, é como quando estivemos nas celebrações do carmo com aquele arrozal de gentes e sentimos as nossas ideias a ensoparem-se no desespero, e depois em surdina
- o que é que estamos aqui a fazer
fugimos à procura de cerveja barata, numa vã tentativa de nos recuperarmos, qual máquina do tempo, para convergir num tempo que nos devolva a vontade de comemorar datas, ou momentos, e quando escrevemos comemorar queremos dizer rememorar datas, ou momentos, mas é uma vã tentativa de é impossível voltar a entender quem declaradamente me abandonou e desculpar-te seria assumir a irrecuperabilidade da minha culpa e tu dizes-me mas eu não sabia da doença e eu respondo não sabias porque quiseste olhar para o lado como quem desvia os pés da merda de cão que está no chão
(sente-se como merda de cão e depois não foge dessa depreciação que faz de si mesmo não admira que ache impossível que os outros o possam valorizar)
mas é uma vã tentativa de nos recuperarmos porque aquela multidão pequena-burguesa - ou grande-burgessa - sufoca-nos aquela réstia de esperança
(qual esperança quando se acredita no absurdismo)
e se estivemos no carmo foi engano, como um álbum de fotografias é engano e quando nos agarramos à nostalgia é porque deixámos de esperar pelo futuro, e nem com toda aquela cerveja podíamos afogar este frenesim de cinismo que se agarra a nós como carraças sanguessugas vampiros chupadores de honestidade dizes-me mas as coisas já não estavam bem entre nós mas todo este cinismo é uma manobra de sobrevivência conforme nós assumimos que estamos perdidos nesta coisa confusa a que chamam vida, e à noite olhamos ao espelho e perguntamos
- o que é que estamos aqui a fazer
se somos homens do passado ou do futuro, porque do presente não somos, porque sentimos este desenquadramento, e não se trata de acomodação ou preguiça ou, no limite, um desajustamento social por incapacidade psicológica nossa
(diz que não mas às vezes parece que diz que sim)
e recordamo-nos que fomos convidados a tocar música num estúdio e em cinco minutos de experiência puxámos do cigarro
- o que é que estamos aqui a fazer
e fomos embora, dado que falamos línguas diferentes, só pode, visto que falam baboseira e nós juramos que não percebemos respondo-te que quem tanto aceitou tem sempre a opção de dizer que não obrigado visto que quem dá expõe-se e que quem recebe escolhe e o melhor é ficarmos por aqui dado que teria de explicar o enraizar da filosofia do consumo da mesma forma que juramos que não percebemos as comemorações no carmo, porque soubemos, por decreto exposto em diário da existência, que fomos expulsos do tempo.
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