terça-feira, 27 de maio de 2014

Sinfonia de Chuviscos em Parapeito de Primavera


É como se na alegria chovesse tristeza, e é desta forma que contemplamos o parapeito da janela em manhã de chuva, de gotícula em gotícula uma valsa de moléculas aos pulos, uma sinfonia de gotejamento oferecida aos vãos enquanto fazemos a barba cantarolando tchaikovsky, convencendo-nos que cantando, assobiando, trauteando, expurgamos a infelicidade projectando esperança que o dia de hoje tem tudo para correr bem, e distraídos, com mãos desarranjadas, um golpe no pescoço
(e estaria mesmo distraído)
gotícula em gotícula sujar o lavatório de sangue, primeiro uma coisa fina e depois, progressivamente, uma coisa volumada, densa, a caminho de um rio, todo um lavatório a transbordar e um chão com tonalidades avermelhadas e são os nossos pés que se afogam no nosso sangue, como quando dormimos e sonhamos com mundos fantasiosos, uma alegria de existência, um hino ao prazer, e se alguém se debruçar sobre nós constata um ligeiro sorriso de quem está feliz, mas como em qualquer história bem contada há uma variação brusca, um revezar de condições, um salto, um tropeçar, um cadafalso, invadem-nos as ausências e experimentamos o terror dos pesadelos esquecidos, acordamos em sobressalto, ofegantes, transpirados, as pupilas em explosão, e o que dizer das nossas mãos, apertadas, punhos cerrados, compressão total, com pressão total, a cabeça a mil à hora e a cabeça a mil à nora, deslocados da razão num desespero enorme, e se voltamos à almofada enrolamo-nos como crianças em convulsão
fecha os olhos e não sonhes não sonhes é só fechar os olhos e não sonhar e por favor não sonhes é só mesmo fechar os olhos e o tempo correr sem sonhar e depois acordar como se nada tivesse acontecido
(amedrontar-se com pesadelos e depois não quer sonhar e não se admire quando afirma que não se consegue ver no futuro)
enrolamo-nos mais e mais, conforme em criança quando jogávamos à bola e se nos pregavam uma rasteira, sem nos tocar, mergulhávamos no chão, enrolados, agarrados ao joelho direito e depois agarrados ao joelho esquerdo, e com tanto teatro esquecemos o joelho, enrolamo-nos cada vez mais e é como se aquela rasteira inexistente fosse a materialização da violência dos dias comuns, e quando os colegas de equipa e os adversários nos rodeiam, enquanto estes acham que é tudo fingimento e aqueles acham que foi uma entrada assassina, fica só um agrupamento de olhos que nos perscrutem, tal como nos sonhos as ausências surgem e nos perscrutem, ensombrando as fantasias num terror de pesadelo, e tudo se resume a íris e pupilas e silêncio, dado que tentamos expulsar palavras da boca e nada conseguimos, uma vez que temos uma pedra, não na bexiga mas nas cordas vocais
(não terá uma pedra na cabeça)
e naquele esforço último conseguimos sonorizar qualquer coisa que não palavras, qualquer coisa como um guincho naquele sábado de manhã, já o vizinho pendurava o porco de pernas para o ar, e tudo o que havia no ar era uma atmosfera difusa, dado que nos assaltava ao espírito uma empatia com o animal, e desconsiderando afeições com suínos o vizinho amolava a faca de corte, e da memória já só nos resta o golpe, os guinchos de que nos arreliam os pêlos da nuca e o gotejar vermelho na terra com papel higiénico a estancar o sangue que jorrava do pescoço, uma lâmina de barbear com tons escarlate, e de pingo em pingo uma valsa no parapeito da janela, enquanto chove torrencialmente numa manhã de primavera, e percebemos que há inutilidade na esperança, a meio caminho de aceitarmos a inevitabilidade do absurdo, porque é como se na alegria chovesse tristeza.

Imagem retirada daqui

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