domingo, 31 de agosto de 2014

Identificativo de Benfiquismo

O que é o Benfiquismo senão um conjunto de narrativas que montam memórias e histórias, num conjunto de pessoas que partilham uma idiossincrasia que foge à nacionalidade e que nasce do acaso de uma herança ou de um contágio vizinho ou de um miúdo que se senta no lado esquerdo de um banco traseiro de um táxi.
O que é esta coisa que nos identifica a um clube desportivo senão um acondicionamento acidental que nos traça uma linha invisível a que chamamos destino, e que a razão nos oferece o argumento do abandono e a emoção labora no sentido contrário.

O que é o Benfiquismo senão uma linguagem que não se traduz em palavras, gramática, semântica, mas antes uma linguagem que se constrói por olhares, abraços, festejos e lágrimas, uma linguagem tão própria que constitui, aos poucos, um âmago da identidade pessoal e colectiva, e que nos marca o discurso e o carácter e as arritmias cardíacas.

O que é o Benfiquismo senão um funeral de um amigo, em cujo caixão se deixou repousar a bandeira do partido e a bandeira do Benfica, até os vermelhos se confundirem no que parecia ser um único tecido, dado que a viúva afirmava que o comunista e o benfiquista eram a mesma pessoa e o neto levava um e pluribus unum enrolado no pescoço.

O que é o Benfiquismo senão um colega de internamento na hematologia resgatar na véspera do seu falecimento, num lapso de senilidade, a curiosidade de saber se o Benfica ganhou o jogo, e na falta de atrevimento terei dito que sim, enquanto sangrava por dentro pela mentira, enquanto o colega terá provavelmente esboçado o seu último sorriso.

O que é o Benfiquismo senão um intervalo de um fratricídio absurdo e criminoso como o da guerra colonial, quando se apontavam os holofotes para a mata durante o relato de mais um jogo do Benfica, dado que durante 90 minutos fazia impressão matar alguém que partilhava connosco este amor pelo clube da águia.

O que é o Benfiquismo senão trepar os Alto dos Moinhos para testemunhar o maremoto vermelho invadir as artérias de São Domingos de Benfica, num dia de jogo, dado que ver aquela mancha enorme é como saber que chegámos a casa, é como as saudades da especialidade materna que ainda penetra no nosso olfacto e paladar, é como revisitar amigos de outras vivências nossas e bebermos imperiais até nos esquecermos da idade, e com mais imperiais até acreditamos na nossa bonita e desafinada voz, e dado que a única canção que a ebriedade nos permite passa por assumirmos que somos benfiquistas e papoilas saltitantes.

O que é ser Benfiquista senão ter histórias que nos relacionam com o Benfica. Não obedecemos a matrizes glorificadas que dão mote a emblemas e a escudos. Não nos interessamos por datas de fundação ou centenários. Não contamos troféus e vitórias e campeonatos e taças. Somos Benfiquistas por acaso. E é no acaso que o Benfica faz história connosco. 

Ser Benfiquista é narrar o romance da nossa vida com o Benfica, e é participarmos nesta corrente histórica que nos enlaça nesta confusão emocional que chamamos Benfiquismo.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Allfama

Num sítio que vai sendo Alfama entramos numa recém inaugurada loja de uma amiga. Igual a muitas outras, lavadinha, marcas identitárias bem planeadas em três itens: cortiça, sardinhas, fado. Lisboa ou Portugal, implícito em cada um dos itens. Marketing. Loja lavadinha. Sem raízes. Malas, canetas, capas para cadernos, tudo em tecido de cortiça, portuguesa, acompanhados com bolos e bolinhos mais sardinhas sardinhas ou sardinhas desenhadas. À entrada, Fado. Colectâneas de Amália sem cortiça ou sardinhas, valha-nos isso.

Saímos, procurei por uma casa onde já fui feliz, uma casa de fados, com três marcas identitárias organicamente enraizadas: Fado, Benfica e boa comida a preços baixos. Durante um fado um golo do Benfica. Fadista perturbado na própria alegria. Mas é tudo recordações. A casa de fados virou memória. Deixou de existir. Agora é outra coisa. Ter-se-á agora tornado cortiça, sardinhas e… Marketing.

Subimos perdidos por Alfama acima. Procurámos boa comida a preços baixos. Mas só casas de fados sem Benfica e Benfica sem fados. É o mesmo que dizer comida sem preços baixos. Boa comida, apesar de tudo - presumo. Enfim! Três itens identitários: marketing e puta que os pariu que já não há pachorra para sardinhas enlatadas cortiça enlatada Benfica enlatado comida boa em casas enlatadas assepsia asae e enlatados desenhados com sardinhas. Marketing. Putacuspariu que a fome e a carteira quase me levaram “jantar” Mcdonalds em pleno bairro popular e aviso que no dia em que definitivamente não conseguir usufruir da nossa cidade de Lisboa, enfiar-lhos-ei os postais da cidade pelas sardinhas de cortiça acima, ie, inbound marketing.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Crónica de uma Noite de Verão

O que teremos a dizer à noite, dado que é nela que sentimos o beijo das ausências, tal como o contacto de peles alheias que sentimos na cama e nos perturbamos com insónias e vazio e angústia, um absurdo de movimento sem destino, e a pele que julgámos sentir uma prega de lençóis esquecidos, e saímos à rua e é um mundo de sombras lunares e são grilos que nos acompanham nestes pequenos escapes, dado que é verão, uma noite de verão, e estamos secos, boca seca, olhos secos, miolos secos, tripas secas, e beijamos o gargalo da garrafa de cerveja, e na falta de cerveja bebemos pegões, e na falta de tudo buscamos a memória das vidas sentidas e experimentamos a saudade, porém, quando nos deixamos de merdas assumimos que não há saudades, há mariquices, esta necessidade de nos prendermos ao passado porque temos medo do estalo que vem ao virar da esquina, há toda esta necessidade de nos mentirmos como se a ficção fosse, de alguma forma, mais tolerável de viver que a sobriedade das vidas comuns, e é a trocar o passo que voltamos à cama, e esperamos que os mosquitos nos deixem as veias em paz e que nos chupem este medo de viver. 

domingo, 17 de agosto de 2014

Crónica de um Deserto

As curvas fazem a vida, dado que quando olhamos o sol vemos um círculo amarelo pujante, em movimento subtil de trajectória elíptica que reflecte fulgor no metal das jantes, e quando observamos aquela mistura de pneu com estrada, borracha e alcatrão, sentimos a energia cinética traduzida em celeridade e abraçamos aquele torpor mecânico que nos aquece os nervos, uma sinfonia de potência maquinal que rasga a misantropia dos desertos áridos, solo escaldado de verão perpétuo, chão de gretas para refúgio de pequenos répteis, visto que em movimentos circulares uma águia está de sentinela, paciente, olho redondo, persistente na procura de um aperitivo, e se nos fixarmos nesta árvore, possivelmente uma oliveira, constatamos que no nada há sempre qualquer coisa, tamanho absurdo são as teias da sobrevivência, onde uma pequena aranha descansa depois do seu labor, uma vez que o conjunto das pequenas tarefas faz um outro conjunto de pequenas histórias, da mesma forma que as folhas baloiçantes da árvore são causa desta leve aragem proveniente dos recônditos mistérios do planeta, e de papel rabiscado, calculadora na mão, computador com cálculo diferencial e modelos aproximados, tentamos compreender todas as particularidades dos fenómenos reais, contudo, e porque até a sabedoria tem limites, é-nos impossível entender o que faz um carro branco, um dodge challenger 1970, em velocidade colérica, numa estrada alcatroada no meio de um deserto, e se pisarmos a fundo o pedal do travão soltamos uma chiadeira que viola os princípios do silêncio estéril e largamos um fumegar de borracha queimada, pneus que derrapam ora para um lado ora para o outro, e no alcatrão marcamos linhas pretas oblíquas até que o carro, eventualmente, pára, e uma porta se abre, e sapatos que pisam o chão e o nosso corpo que se levanta, mãos nas ancas, dobrar as costas, estalar a espinha, puxar o chapéu e tapar os olhos, é um sol que nos cega, levar a mão ao bolso das calças e puxar um maço de cigarros, e de cigarro na boca contemplar as curvas da estrada que se perdem no horizonte, dado que perscrutamos as essências das coisas até à miopia do nosso entendimento, como quando tentamos olhar para o quadro todo, uma barreira de nuvens nos proibe o abrangência do universo, e nestas condições só percebemos as pequenas coisas, amputações da realidade em fatias muito pequenas, tudo demasiado pequeno e frágil, só uma fracção da verdade, e dado que nos dá uma vontade de mijar, vamos à berma da estrada e baixamos a braguilha, um borbulhar de urina que se mistura com o pó do deserto, e reparamos, fixados, numa águia a vaguear aos círculos num céu vazio de acontecimentos, um céu tão diferente da nossa cabeça cheia de merda, visto que fazemos da nossa vida uma montagem paciente de peças de puzzle, e completamente à toa fomos encaixando partes num lado e noutro e a dado momento percebemos que o desenho não faz qualquer sentido, tamanha confusão de partes que não fazem o todo, um conjunto de disparates sem nexo que nos pesa a consciência e o juízo, acumulado numa massa enorme que nos obstrui a apreciação das múltiplas experiências da vida, e então puxamos a braguilha para cima, apertamos o cinto e, voltando ao carro, abrimos o porta-bagagens, um saco e uma pá, e saindo da estrada, dez, quinze, vinte passos, cavamos um buraco, algumas braçadas e tiramos a camisa ensopada em suor, mais braçadas, e percebemos que há este enorme buraco que temos no peito, e nele há um vórtice de emoções perdidas, assuntos inacabados de uma vida passada que nos condicionam os projectos de uma vida futura, e muitas vezes mantemo-lo porque estamos convencidos que um dia os assuntos se resolverão, mas há nós que nunca se desatarão, dado que a vida e suas experiências consequentes são exemplos extraordinários e infinitos, e o nosso entendimento é uma propriedade limitada e subordinada à alienação, e só nos resta cavar um buraco, atirar o saco dos nossos sonhos absurdos para o vazio, tapá-lo, e finalmente voltar para casa visto que apanhámos um escaldão nas costas, o deserto não perdoa os incautos, e tudo o que sobrará é uma névoa escura de um tubo de escape, um carro que faz uma inversão de marcha, um céu órfão de uma águia desaparecida, um sol deslocado, e uma estrada, tal como a vida, feita de curvas que se perderão no efeito tremeluzente de alcatrão escaldado.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Por que se caminha?


Porque tento escrever algo se não preciso e nem sei se tenho algo para dizer? No entanto, cá estou, escrevendo. Não me interessa somente um motivo, um foco ou algo que importe e valha a pena passar a palavras. Interessa-me, sim, o motivo, o foco, aquilo que mais importa. Há quem diga que escrever ajuda a compreender e que o acto obriga a estruturar as ideias. Confesso: escrevo como exercício de busca. Escrever ajuda-me a compreender o que busco.

Mas se tenho disponibilidade porque não escrevo mais? Se calhar não busco compreender coisa alguma, caso contrário, com tanta disponibilidade, teria a tese escrita em vários tomos. Mas se não escrevo como exercício de uma busca, então porque o faço quando o faço? E concluo que escrevo quando não tenho disponibilidade para o fazer!

Talvez esteja aqui o foco, aquilo que importa passar a palavras.

(escrevo muitas vezes como um solista de Jazz improvisando sem qualquer destino e sem adivinhar se surge tensão ou resolução)


Percebi!
É uma fuga. A escrita surge como fuga. Um fazer isto invés daquilo. Não é uma procura, uma busca, e isso muda muita coisa. O foco. A posição do foco: ele passa a estar atrás e não à frente. Buscamos o que está adiante. Fugimos do que está atrás. O motivo? Medo. A busca é curiosidade. A fuga é medo.

Preciso de recapitular.
A busca era uma ilusão e não um impulso da curiosidade. Fujo para perceber? Estranho! Sempre se estranha a novidade. Mas faz sentido. E não faz.

(na música as resoluções surgem normalmente como respostas mas nesta jam não)

Segundo Galeano a Utopia é como o horizonte e nos serve para caminhar. Damos dez passos em frente, e o horizonte dez passos se distancia. A caminhada prosseguiria eternamente. Ele ou eu, um de nós está errado. O que nos faz caminhar é o medo e não a utopia. Caminhamos dez passos em frente e logo atrás o medo com dez passos nos persegue.

Andamos a medo. É a nossa maior força motriz. O caminho faz-se fugindo. A curiosidade e a utopia são um álibi da fuga.

Escrito isto, compreendi que escrevo enquanto fujo. Compreendi mesmo?

(sem rumo delineado as notas que foram tocadas dão mote às que virão)


Perdi-me! Se soubesse porque escrevo talvez não tivesse escrito isto. Talvez não escrevesse de todo.

Pensei em parar e deixar-me apanhar. Mas o pior medo é aquele que desconhecemos ter medo. E com este texto dei outros dez passos em frente. Outros dez passos ouço atrás! 

Galeano ou eu, um de nós está errado e ambos estamos certos. Está aí o foco!

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Centelhas que ainda Faíscam #2

Paper Memories

Obra de Theo Putzu, realizador e fotógrafo oriundo das calles de Barcelona, que subtrai do Homem a solidão para reencontrar-se com âmago da humanidade: a memória.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O Mito de Empreendedorismo

O empreendedorismo não é uma moda, é uma filosofia. Empreendedorismo não se limita às antigas definições. Faz parte da mutação económico-social vigente. Não é por acaso que empreendedorismo é matéria explorada por cursos e cadeiras ligadas à gestão empresarial e à economia. 
É importante perceber que há uma inevitabilidade: todos os sistemas mudam. Estão em perpétua mudança, e não há forma de travar a mutabilidade. 

Longe vão os tempos em que a economia focava-se na produção. A economia de hoje foca-se no lucro. O lucro faz-se de duas formas: exploração de mão-de-obra e especulação. Muito ruído se faz para fugir às evidências. É preciso repetir vezes sem conta. O lucro faz-se pela exploração de mão-de-obra e pela especulação. O lucro faz-se pela exploração de mão-de-obra e pela especulação. 
Contudo, esta filosofia económica tem falhas que consequentemente levam a crises económicas, ou crises financeiras ou crises imperialistas. Ora faz-se uma crise de sobre-produção ora faz-se uma crise de especulação financeira.
Como se disse, todos os sistemas mudam. Tenta-se corrigir as sucessivas falhas. A última resposta do sistema actual é o empreendedorismo. O antigo consumidor passa a ser consumidor-produtor-consumidor. Todo o individuo passa a produzir e a consumir no binómio que se mistura e que se confunde. Produção e consumo fundem-se numa nova forma de ser. Produção e consumo passam a ser um único acto. Isto não seria mau se, primeiramente, a produção fosse orientada e organizada socialmente, e não por impulso individual; e se esta relação produção-consumo libertasse o homem como ser que usufrui a vida e as suas respectivas experiências humanas. O empreendedorismo levará o homem a extinguir-se em relações de mercantilismo. As relações autênticas não cabem nesta nova filosofia. Tudo será mercantilizado e objectificado. No passado mais recente até aos dias de hoje constatamos o óbvio: o empreendedorismo tem levado milhares de indivíduos a produzir inutilidades originais. O mercado está saturado de produtos e serviços. Aos novos empreendedores, para que sobrevivem num mercado cada vez mais desregulado, altamente competitivo, à mercê de tubarões monopolistas, é necessário e obrigatório que apresentem um novo e singular produto. Tem de ser socialmente necessário? Não. Tem de ser original e apelativo e tem de fazer lucro. Milhares de empreendedores vestem gravata e fato-macaco. São patrões e empregados. Laboram sem horários fixos. Não recebem ordenados fixos. Todo o lucro é revertido como capital de investimento. Se não o fizerem, se preguiçarem naquilo que definiram como período de descanso, estarão condenados a perecerem nos escombros do mercado livre. Todo o tempo é dinheiro e é uma corrida pela sobrevivência. Só se produzirá lixo e gerações futuras em desespero. Aqui está o novo mito de Sísifo. O Mito do Empreendedorismo. 

Para concluir. Muito se tem falado sobre empreendedorismo. Ainda hoje passou na televisão um anúncio que dizia algo como:
«os portugueses são aventureiros e empreendedores»
Os telejornais guardam para o fim crónicas sobre empreendedores de sucesso. 
Mais uma vez: muito se tem falado sobre empreendedorismo. Como fórmula mágica para sair do desemprego. Como solução para quem quer sair do emprego que o torna miserável. Contudo, há pormaiores que são omissos. A esmagadora maioria dos indivíduos que opta por se tornar empreendedor precisa de um empréstimo bancário para capitalizar o projecto. Estatisticamente, a esmagadora maioria dos empreendimentos falha no primeiro ano de existência. Isto resulta em dezenas, centenas, milhares de indivíduos que contraíram um empréstimo bancário que os irá sufocar para o resto da vida. Nada disto se tem falado. Outra questão pertinente prende-se no interesse da banca privada. A banca privada vive da especulação, e o produto que se especula é a dívida. Com a crise imobiliário recente, o ganha-pão da banca privada esfumou-se. Esta nova filosofia que se tem espalhado como infecção é exactamente aquilo que a banca privada precisava. Novos empréstimos bancários que criarão novas bolsas de dívidas, e que resultarão, novamente, em especulação. Quantos mais se aventurarem pelo empreendedorismo, mais a banca privada agradece. E acreditamos, sem sombras de dúvidas, que nada disto é por acaso. 
É necessário e urgente compreender que esta nova filosofia é uma mutação dos sistemas regentes. Contudo, e por muita operação de cosmética que desenvolvam, as principais contradições estão lá todas. Para terminar, um facto histórico: esta filosofia só acelerará o suicídio que o sistema capitalista está condenado a cometer. 

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Bloco de Notas #4

Marguerite Duras
Ponto prévio: só leio prefácios após concluir a leitura. Faço do prefácio um posfácio. No interlúdio que vai desde o ponto final da obra literária até ao início do prefácio, faço uma rápida e breve consideração do que acabei de ler. Com O Amante surgiu-me à mente o termo voyeurismo. Não só aquele voyeurismo que é parte da experiência do leitor - especialmente quando lê autobiografias -, mas também aquele voyeurismo de quem escreve e visita a sua vida passada. Ao terminar o livro, e depois de folheá-lo à procura do prefácio-posfácio, foi inevitável encontrar a palavra voyeurismo que exprime sinteticamente aquele manuscrito de Duras. Foi inevitável porque é uma parte integrante do livro. Tão simples quanto isso.

Outra impressão que me surgiu na mente: o livro é uma brutalidade. É uma autobiografia, mas envolta numa áurea tão seca, tão desprovida de acessórios, tão directa e honesta, que deixou de ser um relato de memórias para se transformar numa reflexão introspectiva sobre este sótão que guardamos na cabeça, e que apelidamos de memória. 

Uma pequena reflexão: qualquer um escreve autobiografias. Mas este livro não foi escrito por qualquer um. Marguerite Duras. A escritora rabisca e o leitor consome, e as imagens transcendem-se e materializam-se num invisível celofone. Estamos abandonados, mas libertos, e experimentamos aquela honestidade que é intensa. Só nos resta observar. Não há nada a retirar. 

Conclusão: reconheço uma ideia que surgiu no livro. O amor é violento. É violentamente prazeroso e violentamente triste. Acho que não é descabido afirmar que no amor há uma parte de nós que é violada. E no mundo como o de hoje, e que amanhã será cada vez mais, dar aquele amor genuíno, tão desligado das condições de retrospectividade, é sujeitarmo-nos à violação.

Imagem retirada daqui