Não quero interrompê-lo mas acha que escrever ajuda a recuperar a nossa presença, é que não me desconsidere a loucura, sou leproso, da mesma forma que vou na rua a procrastinar o verão e percebo que me falta corpo, e são dedos e braços e pernas que me faltam, e juro-lhe que depois volto para trás a apanhar as minhas coisas, e lembro-me de em criança vaguear sozinho por labirintos e de deixar um rasto de côdeas, mas daquelas que os pardais não gostam, não me vá perder e encontrar bruxas velhas com foices e martelos, e é certo que volto atrás, sempre em retrocesso, porque sou leproso, e são dedos e braços e pernas que me faltam, mas se o faço não é para coleccionar as coisas, é para colá-las de novo no sítio
(experimentei cola e não deu)
Não se vá ainda mas acha que escrever ajuda a recuperar a presença, é que tenho um corpo em falta e não sei como sentir-me completo, e volto sempre atrás para apanhar as coisas que me faltam, porém, quando olho em frente fico com a ideia que me perdi, e juro-lhe que já não sei o caminho que devia seguir, e é certo que posso reinventar um outro caminho, mas será o mais correcto, entende estas minhas dúvidas, é sempre este permanente assalto de dúvidas, porque um dia vou na rua a procrastinar o verão e percebo que me falta corpo, e já nem se trata dos dedos, dos braços, das pernas, agora são os olhos, o nariz, a boca, e vou ficando sempre mais incompleto, da mesma maneira que a borracha se vai apagando, e eu convencido que quando se envelhece uma pessoa cresce, mas depois apercebo-me que está tudo ao contrário, e compreendo que esteja a revirar os olhos, mas por favor entenda esta confusão, e eu percebo que tem mais que fazer, mas como escreve devia saber-me dizer se escrever ajuda a recuperar a nossa presença, é que não me resta mais ninguém, e tudo isto é uma chatice, ando a perder as coisas porque sou leproso e não sei como colá-las de novo no sítio
(experimentei fita adesiva e não deu)
E é todo este processo retrocesso sem progresso de voltar atrás e coleccionar dedos e mãos e pernas e olhos nariz boca e agora mesmo caiu-me a orelha direita, e quando olho em frente fico sem saber o caminho que a procrastinação do verão me estava a dar, e se dou um passo em frente não dou, já não tenho pernas, e se pergunto às pessoas não pergunto, já não tenho boca, e é certo que não consigo olhar em frente, os olhos andam perdidos nos interstícios da calçada, e peço-lhe para não me virar as costas, está a ser mal educado, e é um facto que escreve muito bem, mas isso não lhe dá razões para me desconsiderar a loucura, e se tem dúvidas tenho um cartão que diz
Leproso em contínuo retrocesso existencial crónico
E pode parecer repugnante, mas estes cotos são resultado do absurdo, e juro-lhe que me quero colar
(experimentei putas e não deu)
E agora lembro-me do Tod Browning e do homem que sem braços e sem pernas acende um cigarro, e como pode ver, é tudo relativo, um gajo sem corpo pode ser um gajo fascinante, mas aqui entre nós, por favor ouça, aqui entre nós, mas ouça e não me interrompa, não quero saber se tem coisas para fazer, não me chegou a dizer se escrever ajuda a recuperar a presença, mas aqui entre nós não quero ser leproso, quero voltar a estar completo, mas olhe, quando voltar para casa, ouça só isto, quando voltar para casa pense na minha pergunta, quando souber a resposta procure-me aos bocados, andarei espalhado a procrastinar o verão.
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