domingo, 16 de março de 2014

e Tu & Eu [conto]

Eu sou eu, e não outro. Estou aqui, não acolá. É estranho! Podia ser aquele no entanto sou eu. Comprimo a língua contra o céu da boca. Sinto. Confirmo, estou aqui, em mim. Sou eu em mim, e não noutro, acolá. Ele tem um eu dele. É estranho, mas estou aqui em mim. Comprimo a língua no céu da boca e realmente sou eu.

E se estive eu antes noutro? Se fosse aquele? Um outro estaria em mim. Como foi que eu ao nascer cresci em mim e não naquele?! Seria provavelmente melhor. Ser aquele outro deverá ser melhor que ser eu. No entanto, ele tem quase setenta anos. Não, ele tem quase oitenta anos. Tem a morte mais próxima que no meu caso. Que alívio seria morrer! No entanto, observo-o, e quanto mais perto da morte, mais ele tem pena de ter de morrer. Mas será mesmo assim? Aqui - em mim - até que vou gostando de estar vivo, mas preferia talvez ser um outro. Ter cerca de setenta anos deve intensificar o prazer de viver. Ou talvez o desprazer. Se pudesse por uns segundos eu ficar nele, saber como é ser ele e voltar de seguida a mim, ficaria a saber. Posso sempre desconfiar e tentar responder-me - em mim - a partir dos outros: tanto o negro como o mais brilhante da vida se intensificam com o aproximar da morte. Ou não, e a morte seja até ao último suspiro uma abstracção. Jamais saberei, pois em mim sempre estarei-serei.

E aquela rapariga além. Alta, morena, olhos verdes, bonita de sorriso fácil de voz e palavras doces. Como deve ser maravilhoso ser-se ela! Como será ser ela? Estar nela? Não sei se devo usar o verbo ser ou estar. Mas nunca fui bom a optar à primeira pelas palavras mais adequadas. Menos ainda perante uma bela mulher. Nova tentativa: como será ser ela? Ser nela? Estar no ser dela? Não está a melhorar. Problemas de expressão. Se por uns segundos pudesse ser nela, que sentiria e pensaria? Que desejará ela? Que vazios terá por preencher? Que falta lhe falta a ela? Se calhar é algo que não me falta a mim. Ninguém saberá se o peso que ela transporta será pior que o meu. Diria talvez, se realmente encontrei as palavras adequadas: Ninguém saberá se o peso que ela é não está pior que o meu. Peso de vazio. Em mim, isto é, dentro de mim, nada mais pesa que o vácuo. Mas e ela? Provavelmente o peso da falta que lhe falta seja completamente desconhecido do meu mundo, do eu que sou e está em mim a comprimir a língua no céu da boca. Confirmo, sou aqui com este céu e com esta boca. Continuam os problemas de expressão.

Estranho isto! Vim aqui parar em mim, quando podia ser aquele septuagenário ou a atraente rapariga acolá. Sou eu. Um outro para os outros. Repenso as palavras. Se calhar, não para melhor. Refaço as interrogações: Que ter lhes faltam e desejam? Que ser eles desejavam que fossem? Confusão: Ser-ter!! E mais: Serei capaz de me fazer entender? Existirão sequer as palavras necessárias para compreender o que tento compreender? As palavras serão a ferramenta adequada para me explicar? Não há sintaxe que resista quando a ênfase da confusão está na semântica. E a contracção da língua no céu da boca não me esclarece, confusão como resultado das contradições, da incapacidade de responder a esta estranha diversidade de se sermos nós e não outro, e estes serem todos um diferente outro. Não deve pertencer ao pensamento a resposta a este mistério do tu e do eu, independentes, de ser-ter-estares em ti e eu em mim. Este mistério a pertencer a algures, pertencerá aos sonhos. Não há sintaxe nos sonhos. E neles a semântica um espectro gelatinoso onde não há problemas de expressão.

Vou dormir. Vou para os sonhos onde consigo viver e ser noutro sem nunca sair de mim. Não se engavetam de semântica e sintaxe o indivisível divisível espectro entre eu e tu e os outros. Espectral, é isso! O sonho é gelatinoso espectro onde é explicável o verbalmente inexplicável. E pode ser-se outro sem nunca deixar de sermos nós. Sim, pode-se! Não se morre nos sonhos. Acorda-se.


Conto - ou confusão - surgido a partir de...


2 comentários:

Rogério G.V. Pereira disse...

Queres que te diga uma coisa? As crises existenciais prolongam-se na vida. Verdade! Só acabam quando, com a ponta da língua procuras o céu da boca e não a encontras... isso mesmo! Existes, mas não te encontras... lá onde te procuravas está uma maldita prótese...

Então, perguntar-te-ás: "Ó carago, serei eu de plástico?"

Testemunho de um quase septuagenário!

(só te comento porque os YES é uma das minhas bandas, entre tantas)

Bruno disse...

ahah.. Grande comentário!

Estou surpreendido por alguém ter lido este meu texto. Foi-me mais fácil escreve-lo do que relê-lo.

(só respondo porque os YES também me são um sim)