terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Abraço Para o Jantar

«Às vezes é uma manhã de sol. Outras é uma frase trocada com um desconhecido. Nunca se sabe. A mais pequena coisa, mesmo uma coisa de nada, pode fazer renascer no peito dum homem a fé na vida ou a confiança na sua própria virilidade. Vai-se pela rua fora, farto de viver, e, ao cruzar uma esquina, vê-se ao longe uma criança descalça correndo e cantando. De repente, sem que para tal haja qualquer razão, a Primavera ataca o coração dum homem com tal força que nem a recordação da avó, morta e deitada no caixão, consegue dominá-lo. Se não fossem os vizinhos, os anos, o fígado, abalava-se, rua fora, atrás da criança! Só se vive uma vez! Esta vida são dois dias! Quero que se lixe! Tenho a eternidade para estar quieto! Ah, criança duma cana, se eu fosse mais novo...»  (Angústia Para O Jantar de Luís de Sttau Monteiro: página 121)

Às vezes é uma manhã de sol. Outras é uma criança que nos abraça.  
Recentemente escrevi um esboço para um tratado reflexivo sobre a Angústia:
 Homem é Ser Angustiado.
Objecção: Eu sou Ser Angustiado
Não há comiseração, nem há fatalidade. Há uma análise que se cimenta em anos de reflexão pessoal. Tenho seis anos de psicanálise em cima. O termo que mais usei para expressar uma aproximação suficiente ao desgosto que sinto é Angústia. Quando o digo, sei localizar o espírito no espaço e no tempo, e isso é condição imprescindível para fazer uma auto-análise. 
Repito-me: Eu sou Ser Angustiado.

Do esboço, escrevi ainda:
Angústia: sensação de vácuo deixado pelo vazio.
Que vazio? O da falta de futuro. 
O futuro não nos pode faltar, é indissociável do presente e do passado, é condição da existência em si. O que pode faltar é a capacidade de projectar. O que pode faltar é a coragem emocional para projectar e aceitar as consequências da frustração e do falhanço. Projectar é isso mesmo: assume-se sempre o risco de não acontecer. Urge-se a competência para aceitar os factos: os projectos acontecem e não acontecem. Aceitemos e aprendamos com isso. 
Mas há este medo de ver os projectos a rebolarem na inutilidade, e se não os consigo inventar por receio, então falta-me o futuro e a capacidade em transportar-me para ele. Fico com o vazio e com a Angústia.

Passei por meses de desumanização. Organizou-me as preocupações de uma outra forma. Um pouco como a cidade de Orão de Camus se viu transformada com a peste. Os problemas do quotidiano entraram num plano inferior, dando lugar a questões e prioridades iminentes. Hoje estou em processo de gradual humanização, e com esse processo regresso às questões secundárias. Esta nova experiência criou novos ângulos e novas perspectivas dos problemas anteriores. Ainda há Angústia, mas é nova, é diferente, incorpora outros vazios e outros medos. É possível que esta nova Angústia me permita fazer novas análises e novos contrastes. 

Há dias fui jantar a casa de um amigo. Recuperar algumas rotinas é entrar no processo gradual de humanização. Com ele estavam namorada e seus filhos. Estes últimos estavam de saída, e a mãe fez questão que os miúdos se despedissem de mim. O mais velho esticou-me um grande bacalhau. O mais novo
(cinco seis anos)
abraçou-me. 
Abraçou-me.
Simples. Um abraço da altura da minha perna. 
Uma criatura de meio metro de altura abraçou-me a perna e desarmou-me a Angústia. E com ela, o espírito perdeu o espaço e o tempo: passado, presente e futuro fundidos numa coisa que não encontra verbo para definir. A criatura de meio metro de altura infinitamente maior que o amedrontado Ser Angustiado. Foi abraço para o jantar. 
Chapada de luva branca: as voltas que a vida nos dá.
Às vezes é uma manhã de sol. Outras é uma criança que nos abraça. 

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