Há vazio quando, nas páginas de um livro, as letras não inventam palavras. São letras soltas que desabitam as ideias, e forçar a leitura só motiva uma ambiguidade de sensações que baloiçam entre a frustração e a indolência. Cresce aquela vontade de encerrar o livro, e quando o faço, nesta sala de espera, as pessoas não inventam a humanidade, são pessoas soltas que desabitam este mundo. Fica-me a dúvida: abrir o livro e espiar letras soltas, ou fechar o livro e espiar pessoas soltas? Há a certeza desta letargia.
Recentemente, alguém fez anos. É um aperto nos nervos. Sombreou o entusiasmo quotidiano. Os dias comuns são arrastamentos de memória: ela.
Ainda sem saber se o livro aberto ou fechado. O hospital é um limbo: surge sempre a indecisão. Vida ou morte. Saúde ou doença. Rico ou pobre. Aberto ou fechado. A médica ao meu lado. Nem me dei conta dela.
Tão absorto no vazio
(antinomia)
e a médica ao meu lado. E a médica não mais do que uma coisa indiferente. Está ao meu lado, como o livro está nas minhas mãos, como as pessoas estão nesta sala. Participa numa realidade que não me acompanha e que não me envolve. Estou a espiar um mundo que se agita num aquário, com um vidro mais opaco que transparente.
A médica segura-me o ombro com a mão e diz até já. É um ombro com uma mão como se fosse um ombro sem mão. A mão aconteceu sem acontecer porque não a senti, não a vivi, e só me certifiquei que no meu ombro houve uma mão porque o vidro, mais opaco que transparente, revelou-me um ombro e uma mão. Mas que mão foi aquela? Do silêncio houve ruído, e fico com a sensação que entre a médica que se sentou ao meu lado, e uma mão que segurou o meu ombro, alguém terá dito Linfoma.
A cama é uma imolação da sanidade: o sono dá lugar à insónia. Dentro dos lençóis há espaço para dois, mas agora só lá estou eu. Se me meto na cama, o vazio escreve na vigília nocturna: ela.
Linfoma rima com coma. Aceito. Hodgkin não rima com nada. Também aceito. Há bocado estava absorto no vazio, mas ainda lá estou. Linfoma, vale tanto como o livro com letras soltas, como esta sala com pessoas soltas, como a médica que esteve sentada ao meu lado. Não é suficiente para me arrancar desta letargia. Linfoma rima com coma
(escrevi cona duas vezes)
mas em coma já eu ando há muitos dias. Ando com vontade de verter o aquário. Ficava um vazio total, sem espaço para a ambiguidade entre a frustração e a indolência. Ficava só a indolência. Mas a vontade de verter o aquário deu lugar à vontade de ir à rua e fumar um cigarro.
Pensei que alimentar o vazio com almofadas me sossegasse as insónias. Dentro dos lençóis alimentei um devaneio, mas as insónias perduram, e a solidão convive comigo,
(antinomia II)
e o devaneio constrói-se num nome: ela.
Em dois três cigarros faço uma jornada num jardim. Há um senhor de chapéu e de bigode farto, e há duas cadeiras. Hodgkin está sentado numa das cadeiras, na outra está sentado o devaneio. O meu devaneio está na cama. O devaneio de Hodgkin está na cadeira. Em dois três cigarros e uma jornada num jardim, e há uma solidão que não é só minha. Alimentei o vazio com almofadas. Hodgkin alimenta com pão e pardalitos.
A partir de hoje sento-me no vazio da cadeira, e Hodgkin deita-se no vazio da cama.
Faremos companhia mútua, até que as letras inventem palavras e as pessoas inventem a humanidade, até que Linfoma deixe de rimar com coma. Hodgkin seguirá a sua vida, e eu seguirei com a minha.
Rubrica de Contos: a partir de uma imagem sugerida por Bruno, escrevi este conto.
Imagem original retirada daqui
1 comentário:
Alimentei o meu vazio com teu conto, foi fácil
no meu caso não consigo rimar
linfoma com coma...
e, em vez de ficar feliz, voltei ao vazio da impotência em mudar as coisas...
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