Rugiu na savana. Os desatentos procuram um leão. Olham para um lado e para o outro a longa, infinita, infinda savana. O leão? O estômago do Homem-Animal rugiu na savana. Este Homem é Ser Animal
Ser que é Animal
Ser-se Animal.
O Homem-Animal tem estômago que ruge quando observa uma árvore. Despida, vazia, destituída árvore, sem fruto e sem sombra. O Homem-Animal
(solidão e fome)
E o rugido visceral
E a longa, infinita, infinda savana
(sacana)
Savana, filha órfã de Sahara
Savana, esboço e maqueta da desertificação, só árvore morta e Homem-Animal moribundo.
Fez-se um rio no além-fronteiras. Fez-se um rio pela mão do ciclo hidrológico: o Homem-Animal ainda muito tosco para criar deus na cabeça. Temos de um lado a longa, infinita, infinda savana e a sua ilustração da morte; Temos do outro lado a potente, absoluta, vibrante floresta e o seu monumento à vida. E entre a antagonia,
(o rio)
a dialéctica: a vida exaltante dos crocodilos, tubarões e piranhas; a morte desafiante das mandíbulas, dentes e presas.
Homem-Animal
E o rugido visceral
Sentado junto à árvore que não expande sombra, observa, confuso, a margem contrária e suas curvadas, enormes, frutuosas árvores, e suas curvadas, enormes, frutuosas mulheres, e este Homem-Animal, com comichão na libido e com sarna no estômago, confuso, sentado, limita-se a Ser Animal
Ser que é Animal
Ser-se Animal.
Muitos profetas experimentaram o alucinogénio do deserto. Este profeta não traz indumentária própria de profeta, nem traz consigo uma farta e longa barba, mas traz um farto e longo bigode, e veste-se como senhor do século XIX. O senhor-profeta é homem do passado, para nós, e homem do futuro, para o Homem-Animal.
O senhor-profeta apresentou-se ao piscar de olhos espantados do Homem-Animal. São grunhos estranhos que nós, e as nossas mentes trabalhadas, traduzem em
Friedrich Nietzsche
É um nome. Não se come. O estômago do Homem-Animal rugiu de novo.
Senhor-profeta profetizou
Übermensch [1]
E ainda grunhiu
Gott ist tot
E o nosso cérebro, homens do futuro, percebe
God is tot
tot?
Dead?
God is Dead
Homem-Animal, ainda tosco, abana os ombros com a sua confusão.
Friedrich Nietzsche, homem-profeta, homem do passado-futuro, é estrangeiro. Fala estrangeiro. Fala grunho
(alemão)
Homem-Animal fala outro grunho. Não percebe.
Senhor-profeta voltou-se para a savana, despediu-se com
Also sprach Zarathustra [2]
Fez-se ligação na pequena massa cinzenta do Homem-Animal, juntou os lábios e soprou ar: assobiou Richard Strauss. Levantou-se e, na falta de um fémur solto, aproveitou um ramo partido e uma pedra partida. O Homem-Animal fez um machado sólido com coisas partidas. O Ser Animal é Ser Habilidoso
Ser que é Habilidoso
Ser-se Habilidoso.
Do machado como junção de peças, pouco interessa. Do machado como instrumento, há uma revolução de ideias. Deu-se um salto.
(a brisa traz consigo palavras: teoria dos saltos qualitativos)
Do machado para uma árvore morta tombada, há todo um mundo inconcebível.
Homem-Habilidoso esquematiza planos na terra húmida. Faz desenhos. Faz algumas grafias. Com um galho escreve
Puta a cerca
Lemos mal.
Pula a cerca
Homem-Habilidoso é poeta. Ser Habilidoso é Ser Sapiente
Ser que é Sapiente
Ser-se Sapiente.
Homem-Sapiente faz de uma árvore tombada uma canoa. Propõe atravessar o rio e juntar-se à outra margem.
Há quem diga que Adão saiu dos jardins do Éden. Adão não foi Homem-Sapiente. Homem-Sapiente não sai de Éden, entra.
Homem-Sapiente constata, raciocina, elabora. Homem-Sapiente já é consciente. Olha a sua obra e assume a capacidade de transformar o que o rodeia. Homem-Sapiente crê na sua omnipotência. Tudo é tela para a sua criação. Ser Sapiente é Ser Deus
Ser que se acha Deus
Ser-se Deus
É Homem-Deus.
Quando a canoa atraca na outra margem, há toda uma possibilidade. Toda a potência deste novo Ser capacita-o para uma infinidade de opções. Porém, das raízes mais profundas da consciência, nasce uma sombra, nasce uma dúvida. Na constatação da omnipotência, há também a constatação da não-omnipresença. Na infinidade de opções há também uma infinidade de escolhas, e há também uma infinidade de indisponibilidade. O Homem-Deus chega a esta margem mais livre e mais comprometido. Nesta margem, todo o universo é cheio e infinito. Mas o Homem-Deus, com toda a capacidade infinita para transformar e compreender o mundo, não é infinito. O Homem-Deus, com capacidade infinita, no mundo infinito, é o próprio finito. É muito pequeno.
O Homem-Deus é Ser
Ser que
Ser-se.
O Homem é Ser Homem. Mas recusa-se. Achou-se Homem-Deus. A sombra, que nasceu no abismo da consciência, alastrou-se. A sombra é Angústia.
O Homem é Ser Angustiado.
É Ser Nauseado.
É Ser Absurdo.
Angústia: sensação de vácuo deixado pelo vazio.
O Homem não suporta o vazio. Já foi cheio. Já foi Deus. Hoje é vazio. O Homem não se suporta vazio, então enche-se com a Alienação. O Homem recusa-se e aliena-se.
Hoje o Homem é Ser Alienado
Ser que é Alienado
Ser-se Alienado.
[1] Nota de tradução: Além-Homem. Ver em Wikipédia.
[2] Nota de tradução: Assim Falou Zarathustra. Dupla referência: Livro de Nietzsche; Composição musical de Richard Strauss, adaptada posteriormente no filme 2001: A Space Odyssey
Imagem retirada daqui
2 comentários:
Fala-me a seguir,
na (des)evolução natural,
no Homem como ser Animal-Animal
Lembrou-me um livro: A Peste Escarlate de Jack London. Abordava uma humanidade, do futuro, reduzida ao estado mais selvagem. É muito interessante a perspectiva e a noção de involução social.
O mundo e sua multiplicidade de realidades não se regem somente pelo progresso: há sempre o retrocesso, mesmo quando este é negado.
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