quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Rubrica de Contos: A Angústia da Solidão

Confesso a angústia da solidão. 

É Verão, a cidade escalda no braseiro do betão e do aço. Já passou a hora de almoço: decidi não voltar ao emprego. 
Decidi.
Desisti.
Demiti-me. Estou ansioso. Sufocado. Há uma impressão de pânico.
(É imaginário)
Quero dissolver-me. 
Estou num bar. Acompanho a minha inquietude com moscatel. As cervejas já foram. O vinho desapareceu. A mesa como túmulo de copos vazados, de garrafas vazadas, de alma vazada. Só o cinzeiro se encheu. E tudo o que sinto é
(É imaginário)
pena de mim próprio. De mim próprio? Todo um lamento que desagua em lástima e angústia. Há um saber andar sozinho. Uma aprendizagem. Um Curso Superior. Um manual de instruções. Aprender a conviver com a solidão. Não sei. Nunca me foi ensinado. Sou analfabeto da solidão. Sou
(imaginário)
uma patetice pegada. Vivo só, sinto-me só, vagueio-me só, e não consigo acostumar-me. Dá vontade em desapertar-me, remexer nos órgãos, arrancar uma erva, uma raiz, uma sombra. Desapertar-me e corrigir-me. 
É Verão. O bar evapora-se em penumbra, e dos copos há um remoinho de memórias,
(imaginárias)
uma agitação de nostalgias vagas e perdidas na cronologia da vida. É Verão e lembro-me de encher a mochila com balões de água. Combinei com o L.
(É imaginário)
à frente das escadinhas. Fazíamos parte daquela relação difusa que não distingue amigo de irmão. A nossa amizade era, parafraseando Sándor Márai, «tão séria e silenciosa, como todos os grandes sentimentos que duram uma vida inteira». A nossa amizade 
(Era imaginária)
era uma factualidade dogmática. 
De mochila cheia, fui ter ao local combinado. Sentei-me num degrau, testemunhava a rua. Esplanada com o senhor Macário vertido sobre um jornal. Caniche a passear uma Dona Rosa caquética. Uma pressa que empurrava o senhor Barbosa pela estrada fora. E o L. dava lugar à ausência. O Sol desmarcava-se e as sombras acompanhavam-no. Os balões de água refilavam. Desesperei-me.
(É imaginário)
A tarde findava-se. Os balões adiavam-se. O rabo descolou-se do degrau, a mochila ocupava lugar no ombro, os olhos procuravam na distância qualquer sinal. Os pés despegaram-se da calçada, 
(imaginária)
e de rua em rua, de beco em beco, de escadinha em escadinha, a ausência de L. desenvolvia-se em hecatombe. Todo um fluxo emocional considerava traição, abandono, renúncia, e o caniche dava lugar a ratazana, e a Dona Rosa em bruxa, e o senhor Barbosa em ladrão, e o senhor Macário encorpava-se em demónio, e as árvores agitavam-se como najas hipnotizadas, e os prédios dobravam-se em susto, e os meus pés já não pés
(É imaginário)
os meus pés em tijolos, e se corresse, vertigens, e tudo se anuviava num negrume frio e
(imaginário)
irreal, e uma neblina de medos obscurecia-me os sentidos, e finalmente um movimento, um copo que se enche de moscatel, uma sede que se desmorona em torpor, novo túmulo sobre a mesa, e o Verão empurra-me para um jardim, e a Rute franzia o olho, e a Gorda deitada na piscina
(É imaginário)   
e a Andreia deitada na piscina, e Andreia e Gorda a mesma pessoa, e a Rute de cigarro na mão, a Rute tão nova, a Rute tão emancipada, tão rebelde e tão inconsequente, a Rute que anos mais tarde, a Rute de joelhos a desapertar-me as calças, a Rute que me desapertava 
Despertava
(É imaginário)
Desapertava e despertava o que restava de mim, e a Rute que se perdeu na rua
(É imaginário)
não, não era imaginário, a Rute
Uma puta
perdeu-se nesta merda toda e já não vive, de braço estirado, de cabeça aninhada sobre o vómito, e se palavras sobraram: overdose?
(É imaginário)
Lembro-me da Rute de cigarro e a Gorda na piscina, e peço perdão, a Gorda é a Andreia, a bebida já me sobe à cabeça, e pergunto pelo L. e a Rute encolhe os ombros, diz que não conhece nenhum L., e eu insisto, claro que conhece, há dois dias esteve connosco, e a Gorda estúpida espantada comigo, e a Rute teima que não, e a Gorda sempre espantada, e a Rute desaparece com o fumo, e os nervos tomavam conta de mim, e a Rute a encolher os ombros, e onde está o L., e a Gorda a querer saber, e eu confuso, a Gorda a acusar-me, e eu com vontade de lhe mandar um pontapé nas trombas, a Gorda viu-me a falar sozinho, e eu quase atirar-me à estúpida, e a Rute
- É imaginário
E a mesa já sem espaço para os túmulos, e desde então o L. só aparece nos remoinhos do moscatel, e quando sóbrio, há toda uma angústia da solidão.

Rubrica de Contos: a partir de uma imagem sugerida por Bruno, escrevi este conto.
Imagem retirada daqui

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