Meu caro amigo, eu pago-lhe um copo. Isso tenho a certeza. Aproxime-se.
Deixe que lhe conte sobre o Sr. Oliveira. Você precisa de saber sobre ele. Mas certeza não tenho. Nunca conheci homem tão carismático. Todos o ouviam com máxima atenção. Um grande intelectual e pedagogo. Isso tenho a certeza.
Sentei-me dois bancos à frente dele. Talvez três. Não queria ser incomodado nem pelos meus próprios pensamentos e contemplava o Tejo pela janela. Isso acalma-me, e daí, talvez não. Mas não queria ouvir nada nem ninguém além do trote nos carris.
- A senhora sabe o que é aquilo ali no outro lado do rio?
Foi com essas palavras, meu caro amigo, que naquela viagem de comboio a minha atenção acabou centrada no Sr. Oliveira. Ele falava para uma senhora com pele seca e cor de cal apagada. Ele era um intelectual e queria a atenção de povo. Ele sabia. Inicialmente deixou-me profundamente irritado ser invadido pela sua forte projecção vocal. A carruagem era obrigada a ouvi-lo, e daí, pensando bem, meu caro amigo, talvez não estivesse irritado e até o ouvíamos com gosto.
- Não sei, não.
Foi o que disse a mulher baixinho, ou talvez não tenha sido ela, mas um Não sei, não envergonhado eu ouvi, e vi-a rosando de ignorância erguendo de seguida, timidamente, um olhar curioso. Se não foi exactamente assim, foi quase. Meu caro amigo, logo que o Sr. Oliveira fez a pergunta, todos nós deixámos de saber a resposta. Não estranhe esta momentânea ignorância colectiva, sabíamos que estávamos na presença de uma sumidade e remetemo-nos à nossa manifesta menoridade.
O Sr. Oliveira falava para todos o ouvirem. E todos o ouviam. Calados.
- Era ali, do outro lado do rio, que prendiam e torturavam os comunistas. Esses malandros! A culpa disto é deles. É bom que todos saibam.
Admire-se, mas não se engasgue, quando agora lhe confesso que desconhecia este facto histórico revelado pelo Sr. Oliveira. É verdade, não sabia! E, perante a revelação, estando o Sr. Oliveira no púlpito da atenção dos utentes daquela carruagem, não há nada a duvidar. Aquele timbre reverberante com a voz dramaticamente bem colocada iluminava-nos com uma exortante convicção, embora eu lhe tenha constatado que um muito recente e pouco competente AVC que lhe apanhara o lado esquerdo das sibilação, não deixava dúvidas quanto à veracidade das palavras do Sr. Oliveira. Isso eu sei.
Deixe-me que lhe ofereça outro copo, meu caro amigo, acompanhe-me que há ali uma mesa livre e aproveitarei o conforto dos bancos para lhe contar como este acontecimento mudou a minha vida.
Estive anos ao engano. Iludido andei, confesso-lhe. Ouvíamos atenciosamente o Sr. Oliveira enquanto elucidava a rosada mulher. Subtilmente empurrei para avante o jornal que trazia comigo até o esconder no fundo da mochila que transportava. Acho que ninguém na carruagem se apercebeu. Era ingénuo e não sabia, mas graças às revelações vindas de tamanha personalidade, larguei certas más influências e abracei uma vida de dignidade e de bons costumes.
Hoje reconheço as minhas origens. Faço quase diariamente este trajecto de Lisboa a Cascais e a contemplação deste extraordinário rio e mar não fica concluído sem alguma vez me recordar do Sr. Oliveira, e, como ele, naquela tarde, me mudou com o seu saber. Todos os dias olho para a margem sul do rio e lembro as suas palavras exaltantes. Elas rasgavam a ignorância com saber! Meu caro, fique certo de que só um ser elevado como o Sr. Oliveira tal é possível.
- É ali, do outro lado do rio, veja minha senhora, é ali, o Tarrafal.
Que sabedoria! Era maravilhoso. Emociono-me sempre ao falar deste homem. Meu caro amigo, o Sr. Oliveira era um homem sábio e maravilhoso. Sim, ficámos grandes amigos. Ficava horas a ouvi-lo. Todos os meses, a partir daquele dia, num fim-de-semana pegava nas minhas crianças, apanhávamos o barco em Belém e atravessávamos o rio para comer um robalo ou uma dourada. Ao atracar o Sr. Oliveira enchia o peito de contentamento e dizia para todos o ouvirem: Chegámos ao Tarrafal. Fazia sempre isto. As minhas crianças riam muito. Sempre. Liam metros mais à frente numa placa T-R-A-F-A-R-I-A. Foi ali, meu caro amigo, que as minhas meninas aprenderam a soletrar.
(conto baseado em factos verídicos)
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