terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Havia Dois Eusébios

Por vezes, só entendo a beleza das coisas no comprimento do tempo. 

Eusébio [1]
Lembro-me das traseiras dos prédios Benguela. Chão de pedra polida, muros de betão, balizas a graffiti branco, skates, bando de marginais a chupar o primeiro cigarro, dois palermas de cara chupada de garrote no braço,
(uma seringa perdida no chão?)
bola Mikasa no centro, atacadores que apertam as Sanjo, nervos exasperados, um relógio digital a sugar minutos,
- o filho da puta nunca mais chega
a escola já tinha acabado, número ímpar invalida duelo de campeões, havia uma equipa incompleta, e os minutos a sugar o relógio digital, e o pessoal de punhos cerrados, dentes cerrados, olhos cerrados, e os marginais a tossir o primeiro cigarro, e os de cara chupada a torcer a boca, e as miúdas agrupadas em falanges de curiosidade, e o P. enervado,
- mas o filho da puta nunca mais chega
a sugerir substituto no bando de marginais, e o D. a promover linchamento para o dia seguinte, e um casal de velhotes dobrados sobre sacos de plástico, e a B. a perguntar por mim,
- mas o filho da puta nunca mais chega
e as miúdas agrupadas em falanges de curiosidade a encolherem os ombros, e o bando de marginais a chupar o segundo cigarro, e os dois palermas de olhar cego sobre as traseiras dos prédios Benguela, e um rapazolas a dar autógrafos numa parede, e a B. a apertar o vestido como quem aperta a volúpia, e o P. a dar mais cinco minutos de tolerância,
- filho da puta
quando o bando de marginais expele uma nuvem, de passo lento mas seguro, o número par, o criminoso, o atrasado, o
- filho da puta
aparece para dar início ao duelo de campeões, e o D. a pedir satisfações, e o P. a achar que «arraiar calhaus» não é desculpa para o atraso, e a B. a piscar o olho, e eu a piscar o olho, e o casal de velhotes 
- com licença
e os dois palermas a abanarem-se como palmeiras.

Bola Mikasa no centro, duas equipas já decididas. Faltava o essencial. Cada um de nós personificava o nome do craque preferido,
- Rui Costa, Preud'homme, Yordanov, Costinha, Maradona, Figo, Baggio, Futre, dois Eusébios.

O meu Benfiquismo era autodidacta e de aprendizagem obsessiva. Houve quem me visse com potencial para transportar a mística do clube. Alimentaram-me com cassetes e com imagens a preto e branco. Soava-me a estranho. Faltava Parmalat. Aprendi a falar Eusébio. O King. O Pantera Negra. Havia Pelé para o Brasil. Havia Eusébio para Portugal. Aprendi o chuto. Pé esquerdo ao lado da bola. Pé direito esticado. Costas dobradas. Cabeça a apontar para o golo. Bola ia sempre em meia altura. Não dava «três pontos para o País de Gales». Dava golo. Em duelo de campeões, eu tinha de ser Eusébio.

JM era sportinguista. Era lagarto. Sofreu horríveis túneis da morte. Carolos, belinhas, calduços. Não renunciava o verde e branco. Chorava o seu sporting como nunca vi chorarem pelo Benfica. JM era doente. JM era doentio, amava o sporting, odiava o Benfica. Amor que se cuspia pela alma. Ódio que se regurgitava pelas vísceras. Falava-se em Benfica e o gajo virava as costas, ofendia-se, descompunha-se e remediava-se para longe. Nunca dissera São Domingos de Benfica. Atalhava o nome em São Domingos. JM tinha um ídolo. Queria personificá-lo sempre que pudesse. Não sei onde aprendeu ele a falar Eusébio. Queria sê-lo. Fazia por sê-lo. 

Bola Mikasa no centro, duas equipas já decididas. Faltava o essencial. Cada um de nós personificava o nome do craque preferido. Havia dois Eusébios. Só podia haver um. Discutíamos. O meu Benfiquismo legitimava-me o Eusébio. JM trazia um saco. Uma camisa vermelha dobrada. Número 10 e Eusébio cosidos nas costas. Emblema do Sport Lisboa e Benfica cosido na frente. JM vestiu a camisa, e a malta estupefacta, e o bando de marginais estupefacto, e as miúdas agrupadas estupefactas, e os dois palermas sempre estupefactos, e o casal de idosos com sacos furados e duas latas de salsicha a rolar no chão de pedra polida, e o puto-estrela a distribuir autógrafos estupefactos, e os prédios Benguela dobravam-se para enganar a miopia, e constatavam a estupefacção geral, e eu soltava impropérios,
- filho da puta 
e o JM dobrava os ombros, e o JM já não era JM, era Eusébio. No duelo de campeões tivemos Eusébio. Também dobrei os ombros, e eu já não era eu, era Isaías. E nesse dia, tivemos um Eusébio que deu um grande bacalhau a um Isaías.

E só hoje, num comprimento de vinte anos, é que entendi a beleza do Eusébio.

[1]  Imagem Original

1 comentário:

Rogério G.V. Pereira disse...

"O meu Benfiquismo era autodidacta e de aprendizagem obsessiva. Houve quem me visse com potencial para transportar a mística do clube. Alimentaram-me com cassetes e com imagens a preto e branco"

Apenas agora, muitos o recordarão pela vida fora...