quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Acabar com a Peste

A Peste de Camus [1]
Acabei A Peste. Levei mais tempo que o suposto. Mas afinal o que era suposto? Levei mais tempo que o normal. Ando exausto. Soube hoje que ando anémico. Tenho dias em que os olhos pulsam. São olhos que querem fugir das concavidades. Soube que é da tensão alta. Abro um livro, leio, perco a concentração, as letras fogem-me, fecho um livro. 
Li A Peste em avanços e recuos. 
Quando leio, trago comigo um pequeno bloco e uma caneta. Anotam-se páginas e parágrafos, título do livro. Guardo em papelinhos os momentos de extravasamento. A leitura extravasa-me. Francesinhas, imperiais e Benfica. Extravasam-me. Miúdas em biquíni derramam-me. Morenas, loiras, ruivas. Derramam-me.
Escrevi num papelinho:
 Earl Sweatshirt
 A Peste - pág 220: fim do primeiro parágrafo

Earl Sweatshirt [2] é intruso. Pertence ao papelinho, mas não devia. Página duzentos e vinte:
«Tudo o que o homem podia ganhar no jogo da peste e da vida era o conhecimento e a memória»
Há uns anos, numa reunião da JCP, vociferavam disparates. Disputas constantes. Tremenda desilusão. Abandonei o Vitória. Não sabia como dar corpo à luta. Ainda hoje não sei como fazê-lo. Dantes preocupava-me, hoje não: um dia ignifico-me no caminho da luta objectiva. É uma certeza. Farei a diferença? Não interessa. O mais importante é a memória e o conhecimento. Percebi isto recentemente. É por isso que não vivo preocupado. Debelarei doenças e pestes. Acabarei o meu curso superior. Suportarei o peso da minha emancipação como indivíduo. Derramar-me-ei com morenas, loiras e ruivas. Farei de mim parte da enorme engrenagem que tece a luta e a história dos homens.
Tudo por etapas.
Uma a uma.
Amanhã haverá outra: acabar com a peste. 

[1] Imagem retirada daqui
[2] Wikipedia e Youtube

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Gadajace glowy (aka Talking heads) - 1980

Este pequeno filme de 1980 do polaco Krzysztof Kieślowski transforma uma ideia simples numa profunda obra documental. São feitas três questões óbvias, mas note-se como algumas não são fáceis de se responder. “Que idade tem?”, “Quem é você?”, “O que deseja da vida?”. A espontaneidade das respostas revelam sinceridade na maioria das breve reflexões. A linguagem não-verbal é por vezes fantástica. Curioso notar como são as crianças que mais facilmente respondem e a vontade de viver da maioria.


Há um hiato entre o que estas pessoas dizem que são e o que desejariam ser - a tensão para o movimento, para a mudança, encontra-se aí. Está provavelmente nesse hiato uma das contradições fundamentais para a compreensão das nossas vidas.

domingo, 22 de dezembro de 2013

A Minha Raiz Escura.

Rua da Escola Politécnica [1] 
Há dias era Verão. Raízes escuras cresciam nos nossos pés.
Raízes?
Sombras.
Sombras escuras cresciam nos nossos pés. Hoje é Inverno. As sombras parecem-me mais modestas. 
No Verão, Lisboa é film noir. Luz e sombra. Acção: vejo-me parado na Rua da Escola Politécnica. Estou a tentar enrolar um cigarro. Faço-o parado, calmo, sol junto à nuca. Reparo na minha sombra, raiz dos pés à parede. Ainda ocupado a enrolar o cigarro, a sombra estica o braço e acena-me. Quase deixo cair o tabaco. Um susto que se transforma em curiosidade que evolui para satisfação. Uma sombra que comunica. 
A razão invade-me. Olho para trás: afinal a sombra não me pertence. Tristeza. Enrolo os olhos para baixo e sigo a minha vida. 

[1] Imagem retirada daqui

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O Egoísmo dos Saudáveis

Do filme As Good as It Gets
«Look, you, I'm very intelligent. If you're gonna give me hope, you gotta do better than you're doing. I mean, if you can't be at least mildly interesting, then shut the hell up. I mean, I'm drowning here, and you're describing the water!»  (Do filme As Good as It Gets

Não é dos meus filmes preferidos. É interessante, entreteve-me e o tempo passou. A dado momento, e num contexto próprio, Jack Nicholson diz o que acabei de citar. De uma forma tão espontânea, dei à frase um outro contexto, um contexto pessoal, um contexto único. Senti que aquelas palavras explicavam, parcialmente, um sentimento meu.

Nos dias do meu internamento, conheci uma senhora, quase em idade de reforma, que tem leucemia. No total serão oito meses de internamento. Ela ia a metade. 
Ela já ia a metade?
Ela ainda ia a metade?
Chama-se Maria José. Ficou Zézinha. Natural de Portalegre. Toda a família é de lá. Todos os amigos são de lá. 
Quando estive internado, tive visitas todos os dias: fossem à semana ou ao fim de semana. A Zézinha só tem visitas ao fim de semana. Levantam-se questões. As assimetrias regionais são uma delas. Haverão outras questões para outros textos. Mas de todas, a injustiça é a pior delas. 
No serviço de Hematologia, temos vários quartos e temos uma sala. Designa-se Sala da Televisão. Servia para quem tinha coragem física para se levantar das camas. Fazia esforço, as pernas bambas aguentavam-se como podiam, e oferecia companhia aos meus colegas de internamento. A maioria com idades para serem meus pais. Uma outra maioria com idade para serem meus avós. Ninguém via televisão. Olhávamos para o ecrã. É possível que o aparelho nos oferecesse conforto visual e auditivo. Há uma leve sensação de normalidade quando ainda se pode ver televisão, mesmo quando só olhávamos para o ecrã.
Num desses dias, fiquei sozinho com a Zézinha. De vez em quando, a Zézinha desviava os olhos para o chão e, em voz baixinha, dizia
«que chatice»
A coisa repetiu-se. Disse à Zézinha que se quisesse desabafar, eu estava disponível e com vontade de a ouvir. 
Explicou-me que, volta e meia, ganha consciência da doença. Contudo, só consegue expressar em palavras a sua revolta quando não está com as visitas. Sai-lhe
«que chatice»
quando está com outros doentes: somos os únicos a entendê-la. As visitas, os «saudáveis», logo lhe dirão que é preciso aguentar, que está quase, é preciso força, é preciso coragem, é preciso acreditar. Ela sabe disso. Todos os doentes sabem disso. Todos nós, diariamente, a toda a hora, mesmo em sonhos, somos confrontados com a nossa realidade. Contudo, estamos doentes, e é uma chatice. Aliás, é muito mais do que isso:
É uma valente merda.
Mas a Zézinha não tem coragem para soltar esta frustração quando estão os «saudáveis».
Quando escrevo e defino «saudáveis» faço-o em plena consciência. O que é ser saudável? Haverá alguém que o seja verdadeiramente? Não seremos todos doentes? Parece-me que sim, mas ao doente oncológico abre-se uma cisão tão profunda e tão violenta que é impossível não distinguir os que são doentes dos que não o são. Mas deixarei esta questão para um outro dia. É um tema extenso que precisará de muita reflexão e, consequentemente, de muita revisão de conceitos e ideias. 
Dizia que a Zézinha não tem coragem para soltar a frustração. Também não a tenho. Fazemos papel de mentirosos. Os nossos dias são insuportavelmente longos. As nossas debilidades fogem à nossa imaginação. Há uma sensação de «sub-humanidade» em nós. Nos «saudáveis» há uma crença cega e egoísta do que os doentes são suficientemente valentes para darem a volta ao problema. Não o fazem por mal. Fazem-no porque se preocupam connosco. Mas nos «saudáveis» deve haver um sentimento de impotência e de inutilidade. É possível que também haja alguma forma de sentimento de culpa. Nos «saudáveis» há um discurso que serve as duas partes. Há o discurso de apoio e ajuda ao doente. Há o discurso de alienação para auto-protecção. Mas não sabem o quão cansativo se torna o discurso. 

Dia após dia, a Zézinha, e todos os outros,  vão buscar qualquer coisa que não é coragem, nem valentia, nem bravura. Todos buscam  a humanidade. Todos buscam a vida. A nós, doentes oncológicos, não há alternativa. Entre a vida e a morte, a gente não escolhe. Há umas semanas explicava à minha psicóloga:
A cada nova sessão de quimio, há uma sensação de buraco mais fundo. E de cada vez que nos vemos no fundo deste novo buraco, passamos todos os dias disponíveis a tentar sair dele, antes que venha um novo ciclo de quimio.
É toda esta ânsia de viver que nos dá coragem física para sair da cama e para nos arrastar até às nossas salas de televisão, só para termos um bocadinho daquela sensação de normalidade. 
E quando ninguém nos está a ver, dizemos em uníssono:
«Mas que grande merda»

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Três palavras: Beleza e Essência

No início deste ano algo improvável ocorreu e a sorte parecia bater-me à porta sem eu sequer estar a procura-la. Não havia escolha, tinha mesmo que aproveitar a oportunidade e por isso arrisquei, mas precisava primeiro de ultrapassar alguns medos.

Uma amiga ajudou-me a ultrapassar esse medo. Quis ela saber três acontecimentos na minha vida que associasse a felicidade e/ou sucesso. Com dificuldade, lá os encontrei nas minhas memórias. De seguida, quis ela três palavras que sintetizassem cada um dos acontecimentos. Lembro-me que a primeira foi Beleza. Mas foi ao pronunciar uma outra que imediatamente me surpreendi.

Essência - disse eu! Foi essa a palavra.

Não percebi como tinha surgido tal escolha, apenas desconfiei que teria sido influenciado pelo marxismo, onde Essência é um conceito fundamental na dialéctica que perfaz com (a aparência dos) Fenómeno(s). Mas teria relação com a Beleza?!

Desde este encontro com esta amiga que evito pensar sobre a relação que poderá existir entre Beleza e Essência. Não sei se será um medo no meu sub-consciente a travar tal descoberta, contudo desconfio cada vez mais que para fazer tal abordagem terei de largar a minha propensão para analisar materialisticamente o mundo e entregar-me com reduzido pudor à metafísica. Seja o que Deus quiser! - agora estou a ser irónico.

Onde estarão algumas das pistas para a busca? Sem me alongar, de momento, se nós procurarmos e estudarmos à essência as formas de uma flor, do corpo humano, da música, encontraremos padrões - como a proporção de phi - naquilo que consideramos como Belo. O facto de que é possível fazer-se na estética esta modelação matemática às formas é no mínimo curioso.

O êxtase que sentiria Nabokov ao observar borboletas é com certeza semelhante à minha quando vejo um velho corcunda a saltar à corda. Foi talvez quando pensava em borboletas que falei à minha amiga as palavras Beleza e Essência. Ou talvez não, imaginava antes uma corda a ser manipulada por um corcunda saltitão. Na verdade escondo-vos algo, e minto-vos, mas há coisas que se calhar nunca se devem contar a ninguém, e quando penso neste assunto lembro-me frequentemente que das coisas mais belas que observei não foi um corcunda, mas foi... não vou dizer o nome dela.

Um amigo, há pouco tempo, confessava que a felicidade lhe estava - e salvo erro a beleza também - associada aos filhos. Eram eles a sua principal fonte de alegria e sentido. Teria ele razão na sua confissão ou seria apenas um êxtase provocado por bactérias no cérebro de um sushi marado?

São imensas as questões. Haverá relação entre felicidade, beleza, essência e sentido? Penso que só há entre algumas delas, mas escreverei noutra altura sobre isso. Não foi ainda nesta divagação que as respostas me surgiram, espero que o leitor ao lê-la tenha melhor sorte.

domingo, 8 de dezembro de 2013

A Morte Serena

«Arrancado a essa longa conversa interior que mantinha com uma sombra, era então lançado, sem transição, para o mais espesso silêncio da terra. Não tivera tempo para nada.» (A Peste de Albert Camus, página 64)

Ao ler a anterior frase, e sem querer alimentar pesares mórbidos, lembrei-me da morte do meu avô.
Antes de mais, é conveniente relembrar que a minha geração, nascida na década de oitenta, tem uma relação apartada da morte. Não vive a guerra. Não vive a peste. Vive a televisão. Não vive a morte objectiva e real. Talvez haja uma excepção: o velório. Dessa morte, nunca experimentei. A morte de hoje é a morte dos ritos funerários. Obviamente que escrevo sobre um cenário generalizado: a morte é vasta e diária. 
Em toda a minha vida, vi três mortos. Um atropelado. Um cuspido pelo vidro do automóvel. O último foi o meu avô. Sobre este último, houve mais que o morto: testemunhei a morte em si. Recentemente internado no hospital, com pneumonia muito avançada, só fui a tempo para me despedir dele. Este meu avô cumprimentava-me sempre com um beijo na testa. Na despedida, ainda ele vivia, a posição inverteu-se: dei-lhe um beijo na testa. O meu avô vivia na sua barriga, que numa respiração pesada se expandia para depois se comprimir. Não havia mais do que isso. Dei-lhe um beijo na testa. Em seguida comprimiu-se infinitamente, até a enfermeira confirmar o que eu já tinha percebido: o meu avô morreu. Da minha parte, nem choque nem lágrima. Testemunhei a morte e esta pareceu-me serena. Houve uma permuta de estados: a tal conversa interior com uma sombra para o silêncio da terra. Nem choque nem lágrima, mas o reconhecimento agradecido e a despedida que ele mais ansiava. Noutros tempos, o meu avô confessou-me, com os olhos marejados, que se tinha despedido de um camarada. De mãos apertadas, os dois despediam-se, e o meu avô rematou no final «até amanhã, camarada». A máquina deu sinal, a mão afroxou, e o meu avô despedia-se de um camarada. Nem choque nem lágrima, despedi-me com «até amanhã, camarada». Ainda hoje convenço-me que teria sido a despedida que ele tanto desejaria. Era avô e camarada.

Faço parte de uma geração diferente. Sou testemunha de uma morte serena. A vida, parece-me, é que se tornou mais violenta.

Grande prazer que a leitura me dá

Ernest Hemingway
«Fomos pela floresta, e a estrada saiu e contornou uma elevação de terreno e à nossa frente estendia-se uma ondulada planície verde, com montanhas escuras ao fundo. Estas não eram como as outras, castanhas e queimadas do sol, que deixáramos para trás. Eram arborizadas e delas desciam nuvens. A planura verde alongava-se. Era dividida por valados e a brancura da estrada destacava-se entre os troncos de uma dupla linha de árvores que cortava em direcção ao norte. Ao atingirmos o fim da elevação, vimos os telhados vermelhos e as casas brancas de Burguete emergirem, à nossa frente, da planície, e, ao longe, às cavaleiras da primeira montanha escura, estava o telhado de ardósia cinzenta do mosteiro de Roncesvalles.- Lá está Roncesvalles - disse eu.- Onde?- Além, onde começam as serranias.- Está frio cá em cima - observou Bill.- É da altura. Devemos estar a mil e duzentos metros.- Está um frio terrível.» (Fiesta de Hemingway, páginas 85-86)

«Roncesvalles é um lugar onde, na canção medieval de Rolando,  Rolando e os seus amigos, traídos por um deles, são mortos na emboscada dos Sarracenos. A genialidade de Hemingway está no facto de não chegar a dizer isso. Só a palavra "Roncesvalles" nos diz que os dois amigos se trairão. A amizade está a chegar ao fim. Depois a repetição. «Está frio, disse o Bill. Está um frio horrível.» Naturalmente, está a falar-se do frio no coração deles. Só um grande artista é capaz de dizer tudo sem dizer nada.» (George Steiner no documentário O Belo e a Consolação [1])

Em criança fascinava-me o conceito «mind-blowing». Ainda hoje me fascina. Há outras coisas que também me fascinam, a «teoria da omissão» [2] é uma delas. 
«Para bom entendedor, meia palavra basta» - outro conceito que transporto diariamente comigo. 
Em miúdo, desenvolvi hábitos diários de leitura. Com a juventude, no auge hormonal das aventuras desastrosas, fui perdendo gás, e os livros perderam-se em segundos planos. Quando entrei na faculdade, a leitura recompôs-se como prioridade no meu dia-a-dia. Leio com imenso prazer. É comum apanharem-me a sorrir para um livro. Vivo a leitura de uma maneira absorta. Fora os grandes petiscos gastronómicos, nada me dá mais deleite que ler uma obra de génios. Fi-lo em algumas ocasiões. Fi-lo com Hemingway. O que é, para mim, uma obra de génios? É aquela que me obriga a procurar e a sentir o implícito. E quando encontro-o: «mind-blowing» e sorrio, absorto, para o livro. 

«Só um grande artista é capaz de dizer tudo sem dizer nada»


[1] Youtube
[2] Wiki