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Do filme As Good as It Gets |
«Look, you, I'm very intelligent. If you're gonna give me hope, you gotta do better than you're doing. I mean, if you can't be at least mildly interesting, then shut the hell up. I mean, I'm drowning here, and you're describing the water!» (Do filme As Good as It Gets)
Não é dos meus filmes preferidos. É interessante, entreteve-me e o tempo passou. A dado momento, e num contexto próprio, Jack Nicholson diz o que acabei de citar. De uma forma tão espontânea, dei à frase um outro contexto, um contexto pessoal, um contexto único. Senti que aquelas palavras explicavam, parcialmente, um sentimento meu.
Nos dias do meu internamento, conheci uma senhora, quase em idade de reforma, que tem leucemia. No total serão oito meses de internamento. Ela ia a metade.
Ela já ia a metade?
Ela ainda ia a metade?
Chama-se Maria José. Ficou Zézinha. Natural de Portalegre. Toda a família é de lá. Todos os amigos são de lá.
Quando estive internado, tive visitas todos os dias: fossem à semana ou ao fim de semana. A Zézinha só tem visitas ao fim de semana. Levantam-se questões. As assimetrias regionais são uma delas. Haverão outras questões para outros textos. Mas de todas, a injustiça é a pior delas.
No serviço de Hematologia, temos vários quartos e temos uma sala. Designa-se Sala da Televisão. Servia para quem tinha coragem física para se levantar das camas. Fazia esforço, as pernas bambas aguentavam-se como podiam, e oferecia companhia aos meus colegas de internamento. A maioria com idades para serem meus pais. Uma outra maioria com idade para serem meus avós. Ninguém via televisão. Olhávamos para o ecrã. É possível que o aparelho nos oferecesse conforto visual e auditivo. Há uma leve sensação de normalidade quando ainda se pode ver televisão, mesmo quando só olhávamos para o ecrã.
Num desses dias, fiquei sozinho com a Zézinha. De vez em quando, a Zézinha desviava os olhos para o chão e, em voz baixinha, dizia
«que chatice»
A coisa repetiu-se. Disse à Zézinha que se quisesse desabafar, eu estava disponível e com vontade de a ouvir.
Explicou-me que, volta e meia, ganha consciência da doença. Contudo, só consegue expressar em palavras a sua revolta quando não está com as visitas. Sai-lhe
«que chatice»
quando está com outros doentes: somos os únicos a entendê-la. As visitas, os «saudáveis», logo lhe dirão que é preciso aguentar, que está quase, é preciso força, é preciso coragem, é preciso acreditar. Ela sabe disso. Todos os doentes sabem disso. Todos nós, diariamente, a toda a hora, mesmo em sonhos, somos confrontados com a nossa realidade. Contudo, estamos doentes, e é uma chatice. Aliás, é muito mais do que isso:
É uma valente merda.
Mas a Zézinha não tem coragem para soltar esta frustração quando estão os «saudáveis».
Quando escrevo e defino «saudáveis» faço-o em plena consciência. O que é ser saudável? Haverá alguém que o seja verdadeiramente? Não seremos todos doentes? Parece-me que sim, mas ao doente oncológico abre-se uma cisão tão profunda e tão violenta que é impossível não distinguir os que são doentes dos que não o são. Mas deixarei esta questão para um outro dia. É um tema extenso que precisará de muita reflexão e, consequentemente, de muita revisão de conceitos e ideias.
Dizia que a Zézinha não tem coragem para soltar a frustração. Também não a tenho. Fazemos papel de mentirosos. Os nossos dias são insuportavelmente longos. As nossas debilidades fogem à nossa imaginação. Há uma sensação de «sub-humanidade» em nós. Nos «saudáveis» há uma crença cega e egoísta do que os doentes são suficientemente valentes para darem a volta ao problema. Não o fazem por mal. Fazem-no porque se preocupam connosco. Mas nos «saudáveis» deve haver um sentimento de impotência e de inutilidade. É possível que também haja alguma forma de sentimento de culpa. Nos «saudáveis» há um discurso que serve as duas partes. Há o discurso de apoio e ajuda ao doente. Há o discurso de alienação para auto-protecção. Mas não sabem o quão cansativo se torna o discurso.
Dia após dia, a Zézinha, e todos os outros, vão buscar qualquer coisa que não é coragem, nem valentia, nem bravura. Todos buscam a humanidade. Todos buscam a vida. A nós, doentes oncológicos, não há alternativa. Entre a vida e a morte, a gente não escolhe. Há umas semanas explicava à minha psicóloga:
A cada nova sessão de quimio, há uma sensação de buraco mais fundo. E de cada vez que nos vemos no fundo deste novo buraco, passamos todos os dias disponíveis a tentar sair dele, antes que venha um novo ciclo de quimio.
É toda esta ânsia de viver que nos dá coragem física para sair da cama e para nos arrastar até às nossas salas de televisão, só para termos um bocadinho daquela sensação de normalidade.
E quando ninguém nos está a ver, dizemos em uníssono:
«Mas que grande merda»