domingo, 8 de dezembro de 2013

A Morte Serena

«Arrancado a essa longa conversa interior que mantinha com uma sombra, era então lançado, sem transição, para o mais espesso silêncio da terra. Não tivera tempo para nada.» (A Peste de Albert Camus, página 64)

Ao ler a anterior frase, e sem querer alimentar pesares mórbidos, lembrei-me da morte do meu avô.
Antes de mais, é conveniente relembrar que a minha geração, nascida na década de oitenta, tem uma relação apartada da morte. Não vive a guerra. Não vive a peste. Vive a televisão. Não vive a morte objectiva e real. Talvez haja uma excepção: o velório. Dessa morte, nunca experimentei. A morte de hoje é a morte dos ritos funerários. Obviamente que escrevo sobre um cenário generalizado: a morte é vasta e diária. 
Em toda a minha vida, vi três mortos. Um atropelado. Um cuspido pelo vidro do automóvel. O último foi o meu avô. Sobre este último, houve mais que o morto: testemunhei a morte em si. Recentemente internado no hospital, com pneumonia muito avançada, só fui a tempo para me despedir dele. Este meu avô cumprimentava-me sempre com um beijo na testa. Na despedida, ainda ele vivia, a posição inverteu-se: dei-lhe um beijo na testa. O meu avô vivia na sua barriga, que numa respiração pesada se expandia para depois se comprimir. Não havia mais do que isso. Dei-lhe um beijo na testa. Em seguida comprimiu-se infinitamente, até a enfermeira confirmar o que eu já tinha percebido: o meu avô morreu. Da minha parte, nem choque nem lágrima. Testemunhei a morte e esta pareceu-me serena. Houve uma permuta de estados: a tal conversa interior com uma sombra para o silêncio da terra. Nem choque nem lágrima, mas o reconhecimento agradecido e a despedida que ele mais ansiava. Noutros tempos, o meu avô confessou-me, com os olhos marejados, que se tinha despedido de um camarada. De mãos apertadas, os dois despediam-se, e o meu avô rematou no final «até amanhã, camarada». A máquina deu sinal, a mão afroxou, e o meu avô despedia-se de um camarada. Nem choque nem lágrima, despedi-me com «até amanhã, camarada». Ainda hoje convenço-me que teria sido a despedida que ele tanto desejaria. Era avô e camarada.

Faço parte de uma geração diferente. Sou testemunha de uma morte serena. A vida, parece-me, é que se tornou mais violenta.

1 comentário:

Rogério G.V. Pereira disse...

Cada um de nós pensa que temos a exclusividade de determinados comportamentos, que renovamos valores antigos e os expressamos de modo diferente... tinha para aí 19 anos quando meu avô morreu, E foi (quase) assim...