terça-feira, 17 de março de 2015

Inconformismo - The Great Gig in the Sky

Usamos padrões familiares para evitar cair em desgraça no nosso meio social. As experiências laboratoriais sobre a conformidade de Asch são demonstrativas disso. Sinto cada vez mais falta desse risco de se cair no ridículo na arte em geral. Mas culpa minha, também, por demasiadas vezes apontar o dedo às frustradas tentativas de terceiros em tentarem quebrar os padrões familiares, em particular na música.

Em 1973, durante as gravações de Dark Side of the Moon dos Pink Floyd, Clare Torry foi convidada para vocalizar por cima dos acordes de Rick Wright em The Great Gig in the Sky. A banda não sabia muito bem o que fazer com a música. E colocar Clare a cantar foi ideia de Allan Parsons, produtor do álbum. O curioso é que terminada a gravação da vocalização, Clare mostrou-se embaraçada, pedindo desculpa pela actuação. A banda ficara encantada com a solução dada à indefinição e confusão relativamente ao que fazer com a música em questão. O embaraço teve em parte, acredito eu, na falta de referências relativamente àquele tipo de vocalização. Era um conceito que lhe era estranho.

Sem este histórico acto de inconformismo não teríamos possibilidade de apreciar esta maravilhosa e desafiante peça de musical que hoje nos parece tão simples e normal.




Todo o álbum é um acto de inconformismo.

quarta-feira, 4 de março de 2015

Sr. Romeulloy III - Entre o Nada e o Ser

Em breve ver-me-ei a falar de mim, e só para mim, na terceira pessoa. Algo em breve me acontecerá. Só que ainda não o sei.

Estou no banho. Dão-me banho. Não sei se estou deitado na banheira ou se sentado ao chuveiro. Os meus movimentos não têm agilidade, ou terão? Meus olhos não focam, se focam vejo desfocado e nublado. Cataratas no chuveiro? Parece que vejo bem a poucos centímetros do nariz, as faces são o que me interessa aos olhos, progressivamente vou vendo melhor a focos mais distantes, mas apenas faces próximas de afecto. Cataratas de água, cascatas de nuvens quentes, ou olhos cansados? Não me consigo equilibrar. Soubesse ao menos se estou sentado num banco no duche, ou se deitado numa banheira de plástico dentro de outra banheira maior de cerâmica. Não consigo ver, percepcionar, discernir sequer meus movimentos. Puxam-me os cabelos. Será que os puxo a mim próprio? São poucos os cabelos, isso eu sei. Não sei se crescem ou se caem. Pelo menos dois tenho. Nem sei. Não sei se cresço ou se mingo. Não sei se ganho ou perco visão. Não sei se me ergo ou se me estendo. Não sei que idade tenho.

A partir daqui, inexplicavelmente, vejo-me na impossibilidade de falar de mim na primeira pessoa. Algo me aconteceu. Ou algo ficou por me acontecer. Seja como for, neste momento eu não sou nem me tenho. Isso sei.

Levam-me com urgência para as Urgências. Levaram-me com urgência para as Urgências. O pretérito perfeito, apesar de incerto, confunde-se-me com o presente. Urgência! Assisto-me de fora do corpo o meu corpo. Mas tive corpo? Não sei sequer se aquele meu corpo que olho foi ou será meu. Pulseira amarela ao pulso. Não sei se no meu pulso ou se no de alguém que me acompanha. Meu amor?. Expressões de temor em quem me rodeia. A minha expressão é-me enigmática. Nem consigo perceber se estou ali deitado numa maca, ou se estava ali ao colo de um braço alheio com fita amarela. Mãe?. Nove horas de espera! Corredor sem corrente de ar, paredes?, escuro. Estava frio. Está muito frio. Cada vez mais frio. Alguém se afasta de mim. Não sei se de braços abertos a fecharem-se ou se de pernas abertas a tapar-se. Dois corpos frios se aproximam daquilo que serei eu. Não sei se caminham ou se levitam. Nem se têm corpo. Aproximam-se do que fui eu. Tiram a pulseira amarela e deixam uma etiqueta. Penduram-na no dedão do pé. A etiqueta Nº 251175.

* * *

O Sr. Romeulloy está impossibilitado de se ser. Não pode, portanto, usar as palavras. Deixou de se falar. Deixou de se ouvir. Todas estas prosas que lemos de Romeulloy não eram mais do que os seus pensamentos ou conversas solitárias. Um quadro semântico pintado em tela de vácuo. Efémero, excepto entre o início e o fim.

Link para Sr. Romeulloy

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Reformista Aquático

Um dia ainda irei conhecer alguém que teime que a água pode passar de líquido a gasoso sem um processo violento de transformação. E sem dar "saltos". Dirá essa pessoa, cheia de boas intenções, que a água deve passar de um estado para o outro sem sobressaltos, só possíveis - na cabeça dessa pessoa - quando pequenas mudanças (pragmáticas, claro) ocorrem na água permitindo a transformação desta num gás sem quase se dar por isso. Seria uma passagem suave, calma, sem levantar ondas, borbulhas e fervuras. No fundo, como se a fervura não fervesse. Como se as borbulhas não borbulhassem. Como se ninguém desse pela diferença entre se beber um copo de água líquida e um copo de vapor de água. Como se essa passagem de estado não fosse uma mudança radical. Mas essa pessoa dir-me-á que me devo deixar de radicalismos, preconceitos científicos, fantasias juvenis e passar a ser realista, entre outras considerações dignas de sublimação. Ela ignorará, igualmente, que a água quando sólida, gelada, entre revoluções francesas e outras mais, se fez líquida. Em boa verdade, já conheço muita gente assim, que, sem o saberem, acham que é possível a água passar de estado líquido para gasoso sem um processo revolucionário. São os reformistas aquáticos.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

A Viuva Enjeitada

Isto é uma história verídica. A impotência - cruzes canhoto! - era o maior drama do sr. António, que sobrevivia com sua mulher. A reforma não era boa, chegava a faltar-lhe para os medicamentos, mas o pior era ter uma mulher marreca.

Um dia o drama do sr. António deu uma reviravolta. Tudo aconteceu quando sua mulher perdeu, enquanto limpava o chão da antiga fábrica, o contacto com o chão. Diz quem viu, que ela no ar já ia desmontada e que se terá socorrido de uma Avé Maria que não finalizou. O chão interrompeu-lhe as preces. Esmigalhou o tornozelo. Partiu uma perna em duas. E ao tentar levantar-se abriu o pulso. Mas a reviravolta surgiu aos olhos espantados da vizinhança meses depois: A queda enjeitou a mulher do sr. António! 

A nova configuração da mulher levantou o ânimo ao sr. António e a impotência curou-se.

Isto é uma história verídica, a história de duas pessoas que encontraram felicidade após uma escorregadela. Enfim, apenas é a crónica de um típico caso de vida, entre as poucas que têm um final feliz. Resta contar que o sr. António e sua mulher não viveram a felicidade por muito mais tempo. Era a impotência do Sr. António que lhe mantinha o sistema cardiovascular abaixo dos limites. Certo dia, num momento alto de suas sobrevivências e de unção dos corpos, uma coronária não resistiu. A felicidade deu cabo dele.

domingo, 9 de novembro de 2014

Episódios do Absurdo #6


Absolutamente incrível, admirável, estúpido, ... , quase tudo o que é relativo à espécie humana concentrado num vídeo.