Em breve ver-me-ei a falar de mim, e só para mim, na terceira pessoa. Algo em breve me acontecerá. Só que ainda não o sei.
Estou no banho. Dão-me banho. Não sei se estou deitado na banheira ou se sentado ao chuveiro. Os meus movimentos não têm agilidade, ou terão? Meus olhos não focam, se focam vejo desfocado e nublado. Cataratas no chuveiro? Parece que vejo bem a poucos centímetros do nariz, as faces são o que me interessa aos olhos, progressivamente vou vendo melhor a focos mais distantes, mas apenas faces próximas de afecto. Cataratas de água, cascatas de nuvens quentes, ou olhos cansados? Não me consigo equilibrar. Soubesse ao menos se estou sentado num banco no duche, ou se deitado numa banheira de plástico dentro de outra banheira maior de cerâmica. Não consigo ver, percepcionar, discernir sequer meus movimentos. Puxam-me os cabelos. Será que os puxo a mim próprio? São poucos os cabelos, isso eu sei. Não sei se crescem ou se caem. Pelo menos dois tenho. Nem sei. Não sei se cresço ou se mingo. Não sei se ganho ou perco visão. Não sei se me ergo ou se me estendo. Não sei que idade tenho.
A partir daqui, inexplicavelmente, vejo-me na impossibilidade de falar de mim na primeira pessoa. Algo me aconteceu. Ou algo ficou por me acontecer. Seja como for, neste momento eu não sou nem me tenho. Isso sei.
Levam-me com urgência para as Urgências. Levaram-me com urgência para as Urgências. O pretérito perfeito, apesar de incerto, confunde-se-me com o presente. Urgência! Assisto-me de fora do corpo o meu corpo. Mas tive corpo? Não sei sequer se aquele meu corpo que olho foi ou será meu. Pulseira amarela ao pulso. Não sei se no meu pulso ou se no de alguém que me acompanha. Meu amor?. Expressões de temor em quem me rodeia. A minha expressão é-me enigmática. Nem consigo perceber se estou ali deitado numa maca, ou se estava ali ao colo de um braço alheio com fita amarela. Mãe?. Nove horas de espera! Corredor sem corrente de ar, paredes?, escuro. Estava frio. Está muito frio. Cada vez mais frio. Alguém se afasta de mim. Não sei se de braços abertos a fecharem-se ou se de pernas abertas a tapar-se. Dois corpos frios se aproximam daquilo que serei eu. Não sei se caminham ou se levitam. Nem se têm corpo. Aproximam-se do que fui eu. Tiram a pulseira amarela e deixam uma etiqueta. Penduram-na no dedão do pé. A etiqueta Nº 251175.
* * *
O Sr. Romeulloy está impossibilitado de se ser. Não pode, portanto, usar as palavras. Deixou de se falar. Deixou de se ouvir. Todas estas prosas que lemos de Romeulloy não eram mais do que os seus pensamentos ou conversas solitárias. Um quadro semântico pintado em tela de vácuo. Efémero, excepto entre o início e o fim.
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