quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Livros Marcantes na Minha Vida

Há dias o "C-Zero" escreveu sobre os livros que o marcaram. Agora é a minha vez.

The Hite Report - Share Hite;

Este testemunho de mais de três mil mulheres sobre a sua sexualidade colectado nos EUA na década de 70, influenciado por um forte movimento feminista de então, foi naturalmente um dos livros que mais me marcaram. Li-o entre os 14 e 15 anos. O descontrole vulcânico de um puto destas idades foi por mim colmatado muito graças à perspectiva desfalocentrada aprendida neste livro. Ao ter ido para a cama e para o sofá com estas três mil mulheres tornou umas outras poucas mais felizes, mas a mim trouxe-me infelicidade: a minha ingenuidade não me permitiu antever que numa sociedade como a nossa as mulheres são na maioria também machistas, e elas preferem homens à sua imagem.


A Metamorfose - Franz Kafka;
Este livro marca um antes e um depois na minha relação com a literatura. Já tinha lido livros. Já tinha gostado de ler. Mas aqui percebi que só tinha lido merda. Aos 22 anos acordei metamorfoseado numa espécie de escaravelho e deitado li o livro repassando-o pelas minhas seis patas. Duas seguravam-no, quatro ficavam de pousio. Encantou-me a mistura entre o absurdo da morfologia de Gregor Samsa e o seco realismo das relações humanas. Realismo?!


A Mãe - Máximo Gorki;
Aprender, aprender, aprender sempre! estará para Lenine como Eureka está para Arquimedes. Reza a história que Lenine leu este livro na banheira e no final correu nu pela rua gritando essas palavras. Eu fiz algo parecido. Este livro é uma lição. A mãe de Pavel Vlassov de incompreensão em incompreensão foi agindo e aprendendo, tudo para ajudar o filho. Gostava que a minha mãe o lê-se. Sei que há algo em comum entre as duas. Já eu não me quis comparar a Pavel porque li o livro numa piscina de um hotel de quatro estrelas. Os meus muitos tiques de pequeno-burguês metiam nojo ao meu lado revolucionário que já havia em mim. Agora quando mergulho numa piscina oiço A Internacional. Sei que em nenhum momento da história me comovi até às lágrimas. A água da piscina disfarçou.


[1]


O Estrangeiro - Albert Camus;
O pior que pode acontecer a alguém que não tem filhos é perder a mãe. Pelo menos, para mim. Como pode não haver adjectivos perante tal acontecimento?! Nada li de tão estranho e perturbador como o início deste livro. Que personagem! Que secura! Surpreendentemente, quase no final da obra surge duas ou três frases com poesia para descrever um "pôr do sol" e... desta vez não havia água de piscina... simplesmente, um momento inesquecível. Foi como cor a surgir por breves segundos num filme a preto e branco. Inesquecível. Génio!

A Peste - Albert Camus;
Não sei o que dizer. Não sei o que dizer disto! Se estava agradecido a Kafka por me mostrar o que era literatura, ao ler A Peste, pouco depois de O Estrangeiro, meteu Camus no topo da minha admiração. Lia e fazia paralelismos entre as equipas de saneamento e o PCP tendo em conta a "peste" que assola o nosso país;
«Uma vez que a peste se tornava o dever de alguns, ela surgiu realmente como era, isto é, como o problema de todos». [2]


Os Sofrimentos do Jovem Werther - J.W. Goethe
«Tenho tanto e o meu sentimento para com ela consome tudo; tenho tanto e sem ela tudo se converte em nada.» - Werther
Estive mais de dez anos para o ler. Procurei fazê-lo no momento certo: nem demasiado em baixo, nem indiferente ao tipo de sofrimento em causa. Li-o numa fase avançada de catarse e mesmo assim o diário de Werther salientava-me as veias dos pulsos. Sobrevivi ao livro. Mas que livro!! Não o recomendo, sob o cuidado de não querer ser um dia acusado de tentativa de homicídio por meios literários.

Drácula - Bram Stoker;
Por preconceito relativo a personagens como super-heróis ou como Frankenstein, mantive-me por muito tempo na ignorância perante Drácula. Não sabia o que me esperava. Quando um amigo me disse que não conseguiu ler este livro até ao fim, ri-me. Li-o na língua original com o objectivo inicial de treinar o inglês e não estava preparado para a surpresa. Logo no primeiro capítulo me vi sugado para uma tensão, um suspense, que nunca pensara ser possível em literatura. Até quando lido numa tarde de sol, na multidão de uma carruagem de comboio, a minha respiração alterava-se. [3]

 

A Arte da Guerra - Sun Tzu;
Nada do que ensina é extraordinário. Está tudo dentro do ordinário e muito no chamado senso comum. O fantástico está na capacidade de se intelectualizar e esquematizar o óbvio em curtas frases. Até parece simples. Como tudo tem as suas contradições e conflitos, inclusivamente as relações humanas, A Arte da Guerra é um manual imprescindível. Se fosse um bom aluno do Mestre não referiria este livro aqui: o inimigo agora fica a saber.

A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado - Friedrich Engels;
Foi profundamente desafiante lê-lo. Nunca tinha lido tantas páginas num só dia. Parei, era-me impossível absorver tanta informação. Estava encantado e saturado de tanta novidade. Recomecei meses depois. A humanidade ganhava história, contexto, e o seu progresso tinha uma explicação naquelas páginas. Ao lê-lo apercebemo-nos de quão pequeninos somos na nossa contemporaneidade perante a dimensão do passado da humanidade; é esmagador. Nenhum outro livro foi tão sublinhado e anotado por mim como este. Fala-se um pouco de tudo, desde os excedentes de produção até às mais modernas figuras sociais.
Com o casamento singular surgem duas permanentes figuras sociais características, que anteriormente eram desconhecidas: o amante permanente da mulher e o cornudo. - Friedrich Engels
Esteiros - Soeiro Pereira Gomes;
O livro foi-me dedicado. O mínimo que podia fazer para retribuir a gentileza era lê-lo. Dizia: "Para os filhos dos homens que nunca foram meninos escrevi este livro". Apesar de o livro ser para mim, não deu para não pensar no meu pai. Ser-se menino era um "luxo" de classe. Ironicamente, hoje em dia, o que impedia de o meu pai ser menino é o que adia aos da minha geração deixarem de serem considerados jovens.
Foi a primeira obra do neo-realismo português que li. Marcou-me, entre outros pormenores, a cena das cheias no Tejo, momento em que o Gordo desvaloriza a tragédia reduzindo-a a mera estética. Escrevi sobre isso no Leitura Capital. 

Sonham os Andróides com Carneiros Eléctricos? - Philip K. Dick;
Surpreendeu-me e muito pela positiva. O filme Blade Runner (do qual sou fã) baseia-se neste livro, mas pouco têm em comum além de alguns elementos base. Na obra há uma duplicidade, ambivalência, contradição, que nos entrelaça numa dinâmica de valores e percepção do mundo sempre em transformação, reanálise constante, e o levantar de uma série de questões filosóficas. O que é um ser humano? Que valor tem?... A dúvida, sobre quase tudo, é a angústia predominante em toda a obra a que o leitor também não sai incólume. Magnífica obra de ficção. [5]

 
Pela Estrada Fora - Jack Kerouac
Isto é uma obra para se ler durante o secundário. Não se deveria perder anos em volta de raízes quadradas e seres obtusos de uma faculdade sem se partir numa viagem sem rumo, oferecendo-se o corpo e a alma à libido e aventura. Não se deveria chegar a adulto sem antes se fundir o espírito e a carne em mulheres por despir de cheiros e álcool, contrair herpes ou uma hepatite. Aos 29 anos vivi finalmente tudo isto ao som do bebop mais frenético e soprei cada palavra do livro sincopando a batida com o pé. Dexter Gordon ofereceu-me heroína mas... o que é preciso é ter a intuição do tempo. [6]




[-] Livros que Marcaram a Minha Vida, por C-Zero, aqui.
[1] Jerónimo de Sousa, no Alta Definição (excerto sobre A Mãe de Gorki);
[2] Trecho de A Peste no blog Três Parágrafos, aqui;
[3] O que escrevi sobre o Drácula no blog Três Parágrafos, aqui;
[4] Do post O Cornudo e a Liberdade de Expressão, em Leitura Capital, aqui.
[5] O que escrevi sobre a obra no blog Três Parágrafos, aqui;
[6] O que escrevi sobre a obra e a música The Hunt, no blog Três Parágrafos, aqui;


domingo, 9 de fevereiro de 2014

Episódios do Absurdo #3

Kowloon Walled City

“What fascinates about the Walled City is that, for all its horrible shortcomings, its builders and residents succeeded in creating what modern architects, with all their resources of money and expertise, have failed to: the city as ‘organic megastructure’, not set rigidly for a lifetime but continually responsive to the changing requirements of its user, fulfilling every need from water supply to religion, yet providing also the warmth and intimacy of a single huge household.”
“It was also, arguably, the closest thing to a truly self-regulating, self-sufficient, self-determining modern city that has ever been built”
“Here, prostitutes installed themselves on one side of the street, while a priest preached and handed out powdered milk to the poor on the other; social workers gave guidance, while drug addicts squatted under the stairs getting high; what were children’s games centres by day became strip show venues by night. It was a very complex place, difficult to generalise about, a place that seemed frightening but where most people continued to lead normal lives. A place just like the rest of Hong Kong.”  (Leung Ping Kwan)

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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Rubrica de Contos: Tão Absorto no Vazio

Há vazio quando, nas páginas de um livro, as letras não inventam palavras. São letras soltas que desabitam as ideias, e forçar a leitura só motiva uma ambiguidade de sensações que baloiçam entre a frustração e a indolência. Cresce aquela vontade de encerrar o livro, e quando o faço, nesta sala de espera, as pessoas não inventam a humanidade, são pessoas soltas que desabitam este mundo. Fica-me a dúvida: abrir o livro e espiar letras soltas, ou fechar o livro e espiar pessoas soltas? Há a certeza desta letargia. 

Recentemente, alguém fez anos. É um aperto nos nervos. Sombreou o entusiasmo quotidiano. Os dias comuns são arrastamentos de memória: ela.

Ainda sem saber se o livro aberto ou fechado. O hospital é um limbo: surge sempre a indecisão. Vida ou morte. Saúde ou doença. Rico ou pobre. Aberto ou fechado. A médica ao meu lado. Nem me dei conta dela.
Tão absorto no vazio
(antinomia)
e a médica ao meu lado. E a médica não mais do que uma coisa indiferente. Está ao meu lado, como o livro está nas minhas mãos, como as pessoas estão nesta sala. Participa numa realidade que não me acompanha e que não me envolve. Estou a espiar um mundo que se agita num aquário, com um vidro mais opaco que transparente.
A médica segura-me o ombro com a mão e diz até já. É um ombro com uma mão como se fosse um ombro sem mão. A mão aconteceu sem acontecer porque não a senti, não a vivi, e só me certifiquei que no meu ombro houve uma mão porque o vidro, mais opaco que transparente, revelou-me um ombro e uma mão. Mas que mão foi aquela? Do silêncio houve ruído, e fico com a sensação que entre a médica que se sentou ao meu lado, e uma mão que segurou o meu ombro, alguém terá dito Linfoma.  

A cama é uma imolação da sanidade: o sono dá lugar à insónia. Dentro dos lençóis há espaço para dois, mas agora só lá estou eu. Se me meto na cama, o vazio escreve na vigília nocturna: ela.

Linfoma rima com coma. Aceito. Hodgkin não rima com nada. Também aceito. Há bocado estava absorto no vazio, mas ainda lá estou. Linfoma, vale tanto como o livro com letras soltas, como esta sala com pessoas soltas, como a médica que esteve sentada ao meu lado. Não é suficiente para me arrancar desta letargia. Linfoma rima com coma
(escrevi cona duas vezes)
mas em coma já eu ando há muitos dias. Ando com vontade de verter o aquário. Ficava um vazio total, sem espaço para a ambiguidade entre a frustração e a indolência. Ficava só a indolência. Mas a vontade de verter o aquário deu lugar à vontade de ir à rua e fumar um cigarro.

Pensei que alimentar o vazio com almofadas me sossegasse as insónias. Dentro dos lençóis alimentei um devaneio, mas as insónias perduram, e a solidão convive comigo, 
(antinomia II)
e o devaneio constrói-se num nome: ela.


Em dois três cigarros faço uma jornada num jardim. Há um senhor de chapéu e de bigode farto, e há duas cadeiras. Hodgkin está sentado numa das cadeiras, na outra está sentado o devaneio. O meu devaneio está na cama. O devaneio de Hodgkin está na cadeira. Em dois três cigarros e uma jornada num jardim, e há uma solidão que não é só minha. Alimentei o vazio com almofadas. Hodgkin alimenta com pão e pardalitos.

A partir de hoje sento-me no vazio da cadeira, e Hodgkin deita-se no vazio da cama. 
Faremos companhia mútua, até que as letras inventem palavras e as pessoas inventem a humanidade, até que Linfoma deixe de rimar com coma. Hodgkin seguirá a sua vida, e eu seguirei com a minha. 

Rubrica de Contos: a partir de uma imagem sugerida por Bruno, escrevi este conto.
Imagem original retirada daqui

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A Morte qualifica a Vida

"Nada é permanente, excepto a mudança" (Heráclito)

Sabemos que são passageiros todos os objectos da nossa contemplação. Sabemos que nós próprios somos passageiros. É esta nossa consciência sobre o desaparecimento de tudo que nos faz dar valor à vida (e querer dar-lhe um sentido?). A contemplação do belo deixa-nos melancólicos e pode ampliar-se até a um êxtase. É-nos consolador. A beleza é geralmente reconfortante.

Esta é uma das conclusões que tiro das entrevistas que assisti de O Belo e a Consolação.

Talvez isto explique porque gosto tanto de música, e de ser as obras mais tristes as que mais me inspiram. Revejo-me plenamente neste excerto de um dos meus artistas de eleição:

[1]


 
  [1] excerto do documentário Insurgentes (o filme). Música: Veneno Para Las Hadas.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Livros Que Marcaram a Minha Vida #1


Mar Morto - Jorge Amado
Foi o primeiro livro que me fez chorar. Foi há alguns anos, mas ainda transporto comigo esse momento. É como a memória do meu primeiro beijo: foi um acidente. 

Os Cus de Judas - António Lobo Antunes
Primeiro livro que li de Lobo Antunes. Na minha vida há uma fase pré e pós. Recordo-me que me foi dado a ler por um amigo: «escreves exactamente como este gajo». Li. Não se confirmou: não escrevia como aquele gajo. Hoje já nem sei como devo escrever, apetece-me fazê-lo nos relatórios e nos exames mas não me deixam. Há aquela linguagem «científica». Que chatice. Quero escrever como Lobo Antunes em panfletos revolucionários. 

A Morte de Ivan Ilitch - Liev Tolstói
Como é que imagino o lento processo da morte? A resposta para mim é Ivan Ilitch. No Hospital Santa Maria, presenciei essas mortes. Se fui capaz de as reconhecer, devo essa competência a Tolstói

Tempo Escandinavo - José Gomes Ferreira
José Gomes Ferreira deu nome à minha antiga escola secundária, o mínimo para retribuir a sua simpatia foi lê-lo. Já o tinha feito, em garoto, com As Aventuras de João Sem Medo. Queria algo que me marcasse a memória, e fi-lo com Tempo Escandinavo. Ler o livro ajudou a apaixonar-me pelas miúdas. Acho que me ajudou. Obrigado José Gomes Ferreira. As Anas, Joanas, Elisas, Isadoras, Bárbaras, Dianas, Telmas também deviam agradecer. «Obrigado José Gomes Ferreira» dizem elas no meu imaginário. 

Pela Estrada Fora - Jack Kerouac
Ainda hoje acho que não sei pronunciar Kerouac. Não faz mal. Hoje sei apreciar de olhos fechados o Bop e o Hard Bop. Foi ao ler este livro que bebi um copo com Charlie Parker. É daquelas coisas que não esqueço. 

A Peste - Albert Camus
Num dos momentos mais marcantes da minha vida, em pleno processo de tratamento, durante os dias do meu internamento, Camus resgatou-me parte da sanidade. Aprendi que para superar cancros e cancros é preciso deixar cair a esperança e fazer o que é preciso. Tive de lidar com a Peste como a cidade de Orão lidou. 

Cem Anos de Solidão - Gabriel García Márquez
Que gozo me deu a ler este livro. Foi qualquer coisa de inacreditável. Houve uma parte de mim que se tornou homossexual: apaixonei-me em bruto pela escrita de García Marquez. Ao ler Cem anos de Solidão senti que se falava da história da América Latina e o livro atiçou, em mim, toda esta paixão-combustão que tenho por aquelas terras e por aquelas gentes. 

Lolita - Vladimir Nabokov
Leio sem me preparar para o que vou ler. Entro nos livros completamente virginal e descomprometido. Arrependo-me tantas vezes quando me aventuro sem preparo. Lolita foi um soco no estômago. Foi um pontapé nos testículos. E nunca me arrependi dessa aventura às cegas. Acredito que todos nós guardamos na memória a nossa Lolita. A minha é uma Lolita não ninfeta. Não sou um Humbert Humbert para me deixar seduzir por crianças. 

Cão como Nós - Manuel Alegre
Kurica é como o meu Lux e a minha Milady. E nos pronomes possessivos, não há relação cão-dono. Tudo se aproxima e se confunde como a relação que se tem com irmãos. Nunca consegui separar esta forma de me relacionar com os cães. Este livro ajudou-me a aceitar o adeus do meu Labrador. Se tivesse sido qualquer um de nós a despedir-se primeiro, ele teria sofrido infinitamente mais a nossa falta. É o que me consola. 

A Mãe - Máximo Gorki
Não sei o que dizer sobre este livro. Não foi o primeiro que me fez chorar: foi o segundo. É um livro que me entristeceu ao mesmo tempo que me motivou. Há um misto de emoções, que se relacionam entre si, e que fez desta obra, uma das que mais me marcou. Revejo-me neste retrato que foi escrito por Gorki. Uma pessoa perdida e alienada que se entranhou nas suas obrigações até se libertar. Não sei o que dizer sobre este livro.

Ideia baseada a partir do 10 mil insurrectos
Imagem retirada daqui