Quando a Lua Cheia se derrama na noite, uma coisa enorme, escura em tons esverdeados, debruçada no que parece ser um sono profundo, umas costas que se expandem como uma bolha para logo desincharem num corpo disforme, e escondidos no véu de erva alta, os nossos olhos espiam o inacreditável, e se o vento espirra frio na nossa nuca trememos violentamente, sem perceber se trememos pela temperatura ou pelo pavor dado que o lábio treme e num impulso mordemo-lo porque temos receio de fazer a pergunta e acocorados, os punhos fecham-se tanto que os nós dos dedos ficam brancos como blocos de gelo, e rasga-se uma ideia, ou o que se parece com uma ideia, dado que nesta ilha ou somos nós ou é a besta, e enquanto a consciência ganha corpo, na esquina dos nossos olhos, vemos Simão dobrado num choro e Maurício em debandada, é a constatação que neste confronto, homem e besta, estamos sozinhos, quase pelados, calções em tiras finas, pele gretada, cabelo enovelado em imundície, um facalhão manchado com sangue de bácaro selvagem, o reflexo da Lua na nossa retina é a sina da loucura que nos toma o juízo nem sei se são os teus olhos que se desviam ou se estás a pensar no nosso irmão dado que estamos à espera do avião e sentimos o lábio tremer e é-nos tão difícil reconhecer o dia em que nos despenhámos nesta ilha, sós, da inocência à barbárie num lapso de tempo, o suficiente para entender a fragilidade das nossas dependências
(quando puder desenvolva essa ideia da fragilidade das suas dependências ou por outro lado explique a fragilidade da sua independência)
conforme a roupa, camisa, calções, sapatos desfiados e inúteis, somos selvagens, carne crua, diarreia e grunhos, confrontados com o absurdo, homens e besta, e a coisa enorme que incha e desincha, todo um volume que dá sombra às árvores, e entre nós e a ilusão da sobrevivência, um facalhão pesado, preso ao que resta da indumentária, conforme estamos presos à solidão, entrecortada com os soluços de Simão e o rastejar fugidiço de Maurício, e é quando nos lembramos do dia em que nosso irmão morreu, e mais do que o morto o que nos reteve na memória foi os vivos que ficaram, como quando percebemos que o nosso pai já não nos olhava, dado que a morte enganou-se, trocou-lhe os filhos, o favorito foi-se e ficámos nós, e entre nós e a besta, a diferença atenua-se numa miséria da condição existencial
(a sua condição existencial é a descrença do valor que possui dado que continua a projectar nos outros a validade da sua existência)
e enquanto a Lua Cheia faz-se valer no dorso da besta, levantamo-nos do véu de erva alta, com o facalhão enterrado no chão, junto ao desamparado Simão, e seguimos passo a passo, sem peso, sem restolho, uma brisa que surge e abana as ramagens do arvoredo que nos envolve, levamos a mão ao cabelo comprido e puxamo-lo para trás, e nisto sentimos que a besta está envolvida num zumbido de milhares de moscas, moscas esverdeadas, varejeiras, enormes, um zumbido que estrilha os tímpanos, e a besta, o deus das moscas, de olhos enormes, dardos vermelho baço, sem luz, abertos, aguçados para nós, e nos nossos olhos ainda o reflexo selvagem da loucura, sentamo-nos a dois palmos da besta, de punhos fechados, sem tremuras no lábio.
Receámos perguntar-te mas dado que não nos dizes nada não nos surge outra coisa que não perguntar directamente o que não queríamos dizer
- pai preferias que eu tivesse dado a vida pelo teu outro filho?