terça-feira, 14 de abril de 2015

Episódios do Absurdo #7


Isto está tudo ligado. Conheço um homem que se reformou. E o que fazer com o tempo? Dedicou-se a desenvolver um hobby para vencer tédio. Então ele decidiu desenvolver uma animosidade. Boa ideia! Decidido como é comprou o Manual do Condomínio. Arranjou um épico, justiceiro e legalista motivo por causa das dispensas do prédio. As dispensas fora-da-lei beneficiam todos, excepto a lei. Foi assim que o condomínio tornou-se a sua vida. Coloriu com um estudo profundo e post-its o Manual do Condomínio. Quatrocentos de cinquenta e duas páginas a fundo. Adquiriu valências. Diz que sabe mais que um advogado. E sabe. Vai para tribunal. Sozinho, contra restantes condóminos. Coragem. Uma vida cheia de sentido. Um sentido! Isto está tudo ligado.
__________________
Filme: Sunday in Brazzaville

sábado, 11 de abril de 2015

Jazz e Local de Culto

Universal Indians & Joe McPhee, 11 de Abril de 2015
Acabei de ver o melhor concerto de Jazz que alguma vez vi. Os Universal Indians com Joe McPhee, na Smup, Parede.

Fui sozinho. Subi ao sótão da Smup e sentei-me com antecedência nas cadeiras da frente, fiquei a observar os músicos. Sem nada ter dito ou feito, apenas sentado à espera do público, Joe McPhee tinha claramente uma áurea que só as grandes figuras míticas do Jazz e Blues conseguem ter. Céus!, como pode estar um ser raro destes num sótão na Parede?! Procurei mandar uma mensagem ao André - que não pôde aparecer por causa do canalizador - a dizer que Joe McPhee estava ali sentado a existir, como se pudesse haver seres mitológicos a existir no concreto, mas perdi o contacto do rapaz. Há momentos que se têm de alguma forma partilhar com alguém. Um pôr-do-sol não é tão belo quando se o vê sozinho, dizia-me uma amiga.

Foram chamar o público aos andares abaixo. Fez-se a apresentação da banda como sempre ali se faz. Vai começar o concerto! Simplesmente, quase sem aviso, a banda explodiu em som. Violento, como nunca em outro estilo de música ouvi. Violento, contudo, não é a palavra adequada. Como gostaria eu de saber qual a palavra que descrevesse com justiça aquilo! Soava a Liberdade. Desliguei-me pairando naquela polifonia multilingue e frenética poliritmia emocional que destruía a cada verso sónico as convenções gramaticais da música de plástico, projectado num voo saxofónico, irrepetível, transformador. Afinal, há coisas que só se deve experienciar sozinho.

Sabia, antemão, que muito provavelmente iria assistir a um dos melhores concertos de Jazz que já vi, mas jamais que iria ser tão bom. Fiquei vários minutos a observar a banda a arrumar os seus instrumentos e finalmente desci ao andar abaixo para voltar a mim. Abandonara o sótão dos seres mitológicos. Sentei-me a tentar ler o meu livro enquanto voltava ao mundo concreto. Li (ou tentei ler) sossegado entre a confusão do bar até ter condições de voltar a conduzir e voltar para casa. Definitivamente, há uma relação dialéctica entre o abstracto e o concreto, e o Jazz é um dos intermediários. 

Por muito contraditório que pareça, há pôres-do-sol que se devem assistir sozinho.

terça-feira, 17 de março de 2015

Inconformismo - The Great Gig in the Sky

Usamos padrões familiares para evitar cair em desgraça no nosso meio social. As experiências laboratoriais sobre a conformidade de Asch são demonstrativas disso. Sinto cada vez mais falta desse risco de se cair no ridículo na arte em geral. Mas culpa minha, também, por demasiadas vezes apontar o dedo às frustradas tentativas de terceiros em tentarem quebrar os padrões familiares, em particular na música.

Em 1973, durante as gravações de Dark Side of the Moon dos Pink Floyd, Clare Torry foi convidada para vocalizar por cima dos acordes de Rick Wright em The Great Gig in the Sky. A banda não sabia muito bem o que fazer com a música. E colocar Clare a cantar foi ideia de Allan Parsons, produtor do álbum. O curioso é que terminada a gravação da vocalização, Clare mostrou-se embaraçada, pedindo desculpa pela actuação. A banda ficara encantada com a solução dada à indefinição e confusão relativamente ao que fazer com a música em questão. O embaraço teve em parte, acredito eu, na falta de referências relativamente àquele tipo de vocalização. Era um conceito que lhe era estranho.

Sem este histórico acto de inconformismo não teríamos possibilidade de apreciar esta maravilhosa e desafiante peça de musical que hoje nos parece tão simples e normal.




Todo o álbum é um acto de inconformismo.

quarta-feira, 4 de março de 2015

Sr. Romeulloy III - Entre o Nada e o Ser

Em breve ver-me-ei a falar de mim, e só para mim, na terceira pessoa. Algo em breve me acontecerá. Só que ainda não o sei.

Estou no banho. Dão-me banho. Não sei se estou deitado na banheira ou se sentado ao chuveiro. Os meus movimentos não têm agilidade, ou terão? Meus olhos não focam, se focam vejo desfocado e nublado. Cataratas no chuveiro? Parece que vejo bem a poucos centímetros do nariz, as faces são o que me interessa aos olhos, progressivamente vou vendo melhor a focos mais distantes, mas apenas faces próximas de afecto. Cataratas de água, cascatas de nuvens quentes, ou olhos cansados? Não me consigo equilibrar. Soubesse ao menos se estou sentado num banco no duche, ou se deitado numa banheira de plástico dentro de outra banheira maior de cerâmica. Não consigo ver, percepcionar, discernir sequer meus movimentos. Puxam-me os cabelos. Será que os puxo a mim próprio? São poucos os cabelos, isso eu sei. Não sei se crescem ou se caem. Pelo menos dois tenho. Nem sei. Não sei se cresço ou se mingo. Não sei se ganho ou perco visão. Não sei se me ergo ou se me estendo. Não sei que idade tenho.

A partir daqui, inexplicavelmente, vejo-me na impossibilidade de falar de mim na primeira pessoa. Algo me aconteceu. Ou algo ficou por me acontecer. Seja como for, neste momento eu não sou nem me tenho. Isso sei.

Levam-me com urgência para as Urgências. Levaram-me com urgência para as Urgências. O pretérito perfeito, apesar de incerto, confunde-se-me com o presente. Urgência! Assisto-me de fora do corpo o meu corpo. Mas tive corpo? Não sei sequer se aquele meu corpo que olho foi ou será meu. Pulseira amarela ao pulso. Não sei se no meu pulso ou se no de alguém que me acompanha. Meu amor?. Expressões de temor em quem me rodeia. A minha expressão é-me enigmática. Nem consigo perceber se estou ali deitado numa maca, ou se estava ali ao colo de um braço alheio com fita amarela. Mãe?. Nove horas de espera! Corredor sem corrente de ar, paredes?, escuro. Estava frio. Está muito frio. Cada vez mais frio. Alguém se afasta de mim. Não sei se de braços abertos a fecharem-se ou se de pernas abertas a tapar-se. Dois corpos frios se aproximam daquilo que serei eu. Não sei se caminham ou se levitam. Nem se têm corpo. Aproximam-se do que fui eu. Tiram a pulseira amarela e deixam uma etiqueta. Penduram-na no dedão do pé. A etiqueta Nº 251175.

* * *

O Sr. Romeulloy está impossibilitado de se ser. Não pode, portanto, usar as palavras. Deixou de se falar. Deixou de se ouvir. Todas estas prosas que lemos de Romeulloy não eram mais do que os seus pensamentos ou conversas solitárias. Um quadro semântico pintado em tela de vácuo. Efémero, excepto entre o início e o fim.

Link para Sr. Romeulloy

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Reformista Aquático

Um dia ainda irei conhecer alguém que teime que a água pode passar de líquido a gasoso sem um processo violento de transformação. E sem dar "saltos". Dirá essa pessoa, cheia de boas intenções, que a água deve passar de um estado para o outro sem sobressaltos, só possíveis - na cabeça dessa pessoa - quando pequenas mudanças (pragmáticas, claro) ocorrem na água permitindo a transformação desta num gás sem quase se dar por isso. Seria uma passagem suave, calma, sem levantar ondas, borbulhas e fervuras. No fundo, como se a fervura não fervesse. Como se as borbulhas não borbulhassem. Como se ninguém desse pela diferença entre se beber um copo de água líquida e um copo de vapor de água. Como se essa passagem de estado não fosse uma mudança radical. Mas essa pessoa dir-me-á que me devo deixar de radicalismos, preconceitos científicos, fantasias juvenis e passar a ser realista, entre outras considerações dignas de sublimação. Ela ignorará, igualmente, que a água quando sólida, gelada, entre revoluções francesas e outras mais, se fez líquida. Em boa verdade, já conheço muita gente assim, que, sem o saberem, acham que é possível a água passar de estado líquido para gasoso sem um processo revolucionário. São os reformistas aquáticos.