quarta-feira, 22 de outubro de 2014

António - Herói Pós-Moderno

Gostamos de heróis. Personificações dos nossos desejos capazes de lutar por concretizá-los. Embora, nunca saibamos o que exactamente desejamos lá no fundo! António, nome fictício, é um desses heróis.

António, herói desta história, foi com um casal amigo passear e, depois, já mais calmo, presenteou a família com esticar do pernil. Quem ler a notícia que poderá concluir? Esta história é um thriller da psicanálise do acaso. Esta história é mais um caso de pseudo-análise de classe, mas poucos se importam por a média não definir as relações sociais da propriedade moderna ou outra qualquer. Que interessa isso quando esta é uma daquelas histórias em que, novamente, a realidade é tão real como a ficção. António, à falta de recursos imediatos para fazer cinema (ou jogar vídeo-jogos), traz a ficção à realidade - num vice-versa que funde ambas. Imagem e semelhança. António, herói desta história, artista plástico da vida, e plástico artista da ficção, inaugura sem querer nem saber o neo-ficcismo do pós-pós-modernismo - algo que apenas no futuro ficaremos a saber e já depois de estarmos todos mortos. António ou Zé, sobrenome Ninguém ou Todos. Nós, enquanto continuarmos a escrever coisas, as coisas escrever-se-ão por elas, transformando Antónios em jornais e Jornais em antónios. 

http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=4191610#.VEYMYyNYpJo
Note-se bem. Esta notícia é antes um ensaio sociológico num enredo cinematográfico que ao ser notícia se transfigurou num acontecimento real. E vice-versa. Este acontecimento real transfigurou-se em notícia num enredo cinematográfico que é antes um ensaio sociológico da notícia.

Por fim, vamos mais ao fundo da questão e/ou sobrevoemos de vez sobre ela. António, herói desta história, esfaqueia o desejo concretizado de família e num momento social perfeito. Nenhum desejo, elevado e humanizado em fantasia, é concretizável por inteiro sem matar o sonhador. Não haverá maior pesadelo que a própria fantasia em plena realização. O abismo da plena realização para o vazio levou o herói desta história, António, a matar os seus adereços de vida mais queridos, mulher e filha, à facada! Qualquer pesadelo é melhor que o da plena realização. 

António, herói desta história, arquétipo pós-moderno das massas, Messias pós-pós-moderno, imagem de plástico da nossa semelhança, salvou-se da plena concretização com a fusão da realidade com a ficção. Mas condenou-nos a todos. Os textos noticiosos, fictícios ou não, tornaram-se o enredo da vida, sendo o inverso válido mas redundante escrevê-lo. O fim está próximo. Basta alguém escrevê-lo. Fim.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Crónica de uma Bomba de Gasolina à Noite

E se a mentira que o homem constrói não for a negação das condições do plano da existência mas antes a refracção da própria realidade, dado que a mentira transporta em si os elementos que definem a verdade, como um olhar que capta uma silhueta e especula sobre o objecto, reduzido ao intervalo das possibilidades reais, e é nestas considerações que a madrugada nos leva à bomba de gasolina, daquelas estações que permanecem abertas quando a noite tudo silenciou, e neste cenário o foco centra-se numa mulher jovem de etnia africana, gorda, pouco atraente, olhos cavados, uma cara rebentada de borbulhas, e faz-nos lembrar um ferrero rocher sem que a consciência nos impeça de tecer opiniões deselegantes, pois nesta crueza descritiva há uma validação preambular, mas voltando ao âmago narrativo, temos uma pessoa feia e gorda acabada de sair do trabalho, visto que ainda traz consigo um uniforme da empresa de limpezas, e imaginamos que terá vindo à loja a caminho de casa, uma casa que deve resumir-se a uma sala pequena com kitchenette, uma casa de banho e um quarto do tamanho de uma dispensa, e com isto se define uma casa porque assume uma exposição básica dos elementos que definem uma casa, um espaço que delimita as fronteiras do interior para o exterior, em que se encerra, mesmo quando arrendado, a ideia de propriedade, porém esta personagem não deve desenvolver a consciência para discutir estas, e outras, significações complexas, resumindo a sua relação com o espaço através de construções emocionais relativas à posse e ao status quo necessário para a sua integração social, visto que os seus vínculos sociais dependem da afirmação das condições que constroem as suas expectativas idiossincrásicas e culturais, o que por outras palavras significa que se não possuir um espaço que se possa definir como casa, pode sentir-se rejeitada por um meio envolvente que força a ideia de posse como requisito social básico, e na continuação desta ideia, vêmo-la a comprar duas revistas de moda, vários pacotes de bolachas e chocolate e um saco de pipocas, e não nos é difícil de adivinhar que quando chegar a «casa», e assim que ligar o televisor, não para seguir a programação mas simplesmente para se sentir acompanhada, abrirá as revistas onde constatará que há mulheres que são terrivelmente atraentes, afogadas em luxo e em estatuto de elite, que nada fizeram da vida com mérito próprio, à força do trabalho e do intelecto, mas tão só nasceram com genes que as favorecem nesta geração da humanidade, e esta nossa personagem afirmará nos interstícios da consciência comiserativa que a vida é injusta, e mais uma vez adivinhamos que entre lágrimas recalcará o vazio com chocolates e bolachas e pipocas, com um intuito suicida de sabotar o seu futuro, caminhando num trilho oposto ao projectado, e tudo porque a frustração e a angústia levam-na a odiar-se diariamente, seja no trabalho ou seja em «casa», recusando procurar outras ferramentas para concretizar os seus desejos e necessidades, não só por estar alienada, mas porque precisa de alimentar a mentira, e é esse o ponto nevrálgico deste discurso, dado que os sujeitos constroem mentiras não para negar a miserabilidade da vida, mas antes para se impedirem de constatar essa mesma miserabilidade e transformá-la em algo mutável, pois é mentindo-se que estorvam a mudança e a concretização das projecções pessoais, acabando por realçar e sublinhar a realidade da sua situação, e ao analisar todos os elementos que definem a mentira encontramos a silhueta da verdade, e quando a nossa personagem acordar no dia seguinte, ainda no sofá, com a televisão acesa, duas revistas que provam a insignificância da sua existência, embalagens de plástico vazios, um rosto com rímel borrado e duas novas borbulhas, bastam-lhe um saco do lixo e uma cara lavada para recomeçar um ciclo de autocomiseração que só terminará com um enfarte do miocárdio, c'est fini, kaputt, arrivederci, e tudo isto seria irrelevante se fosse um caso excepcional, mas não o é, pois a mentira continua a ser interpretada como a negação da verdade e não como a refracção da realidade, impossibilitando a tradução das angústias humanas em qualquer coisa transformável.

sábado, 11 de outubro de 2014

O Silêncio

Falta silêncio. Esse bem precioso é constantemente evitado com o encher de chouriços sonoros. A música é quase omnipresente. Entra-se no carro, liga-se o rádio; entra-se numa loja, mais música; sobe-se num elevador, mais notas musicais; vamos mandar uma cagada à WC e também nos bufam com música! Música de merda, normalmente. Mas também a boa música vira poluição na overdose diária a que estamos submetidos.

O maestro Vitorino de Almeida escreveu um pequeno e fantástico livro chamado O que é Música? em que reflecte sobre este assunto, mas noutro sentido ao que acima escrevi. Ele exemplificava que a música ou outro qualquer ruído era admitido conforme o contexto. A cacofonia de barulhos e músicas chocando umas com as outras numa feira ou parque de diversões é humanamente admitida, enquanto um simples tossir num concerto de música erudita pode irritar a plateia.

Que nos leva a evitar o silêncio nos momentos em que o contexto o exigiria? Será a voz interior que de dentro de nós submerge? Há quem ligue uma TV só para companhia, embora ignore a programação. Pelos vistos, mais vale estar mal acompanhado!

Há meses que deixei de ouvir música no carro. Prefiro ouvir o motor ou os estranhos efeitos que o som faz vindos da janela com o movimento. O interesse por este aparente silêncio intensificou-se com os constantes pedidos de minha sobrinha para ligar o rádio na RFM ou na Comercial. É verdadeira poluição sonora. Um nojo de música vomitada numa curta e incessante playlist que nos faz definhar o cérebro e a paciência. Conteúdo e forma musical de plástico. Plástico, plástico e mais plástico, com excepções musicais que se afogam na merda da lista de canções que essas rádio debitam. Poucas coisas me tornam tão óbvio o valor do silêncio, neste caso, da ausência de música.

A rádio Comercial, a RFM, e quase todas as outras, são um atentado à própria música como arte. É musica velha nova. É sempre música velha nova. Não acrescentam nada. As concessões para uso das frequências radiofónicas em que emitem deviam ser canceladas. Estas rádios não dão um serviço positivo à comunidade. Puro desperdício de ondas, quando há um enorme e desafiante mundo de música experimental e música antiga para explorar. Há imenso para se discutir e dar a conhecer sobre música e sobre a sua interligação com a sociedade, mas o que nos dão são receitas de plástico para os ouvidos.

Há dias li um artigo sobre o sonoplasta Vasco Pimentel. Foi inspirador. Fantástica a perspectiva e atitude dele perante o som. Abriu-me os ouvidos e a mente para tudo isto que vos falo. Estes últimos tempos têm sido reveladores relativamente à qualidade e riqueza daquilo que há para ouvir em nosso redor.

Como músico, os pequenos e grandes sons, tanto os amestrados como os selvagens, têm ganho novo corpo e cores para mim. Nada como o silêncio para intensificar o valor do som e música.