E quando as vozes do escuro se calam e nós nos perdemos na solidão, conforme as noites enganam as horas e o vento nos cobre com um manto frio, como aquelas sombras fugazes que quebram a luz dos candeeiros e quando olhamos para trás, apavorados, constatamos o nada, um pânico que nos eriça os nervos, e juramos por tudo que o medo não nos atinge, e é uma mentira grossa porque o estômago nos constrange e a nossa mão tremeleia, consoante os dedos que tacteiam uma coxa, uma perna, um seio, e pele com pele fazemos o amor, até a ausência se esfumar enquanto abraçamos a inexistência
(já pensou que a inexistência sempre esteve lá)
e o que separa o antes do depois é a ilusão da possibilidade, mesmo quando desenvolvemos a noção do ridículo contentamo-nos com as nossas quimeras, e permitimo-nos alimentar a alucinação, desde que a miséria da solidão esteja sonegada no esquecimento, contudo a realidade emerge-nos com a violência da vida e o chão rompe-se num cataclismo que nos engole e que nos atira para o escuro
(admite que é escuro porque não contempla o real)
e é quando dialogamos com os átomos que tudo se desvenda no absurdo, na relação da frivolidade quotidiana com o caos da nossa experiência vivida, e depois o que sobra senão esta espécie de autismo que se desenvolve dentro de nós, como daquelas vez que nos fizeram uma radiografia ao corpo e os técnicos boquiabertos, uma raiz negra ramificada entre o aperto do peito, e quando desapertamos os dentes um tronco ergue-se da boca para fora e abre-se numa esplêndida ramagem, toda ela preta, com uns pequenos frutos escuros, e umas flores escuras, e é quando nos percebemos que estamos podres por dentro
(mas podre está a visão que tem de si mesmo)
da mesma forma que quando falamos com outras gentes temos receio de os contagiar, e não é receio porque juramos por tudo que o medo não nos atinge, mas é aquela consciência imediata que queremos guardar as nossas depressões para nós próprios, como quando fumamos desviamos o fumo dos que nos rodeiam, porque crescemos com a responsabilidade de não encharcar o mundo com o nosso absurdo, condenados a carregar as nossas comiserações até a noite enganar as horas e nos cobrir com um manto frio, e se vagueamos na rua deparamo-nos com uma sombra projectada ao nosso lado, e olhamos para trás horrorizados para confirmar o nada, com o coração a deslocar-se num iminente enfarte
(e não se admire se um dia o seu corpo não resistir)
porque todos temos limites, e continuar esta sofrida solidão, mesmo que pontualmente esquecida porque achamos que estamos acompanhados, só nos trará a antecipação da inevitabilidade, e depois caímos no desespero do arrependimento que se traduzirá no silenciar das vozes do escuro.
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